Já anoitecera e eu ainda não havia sentido nenhuma dor em meus braços. Andamos por horas sem sentir, sem parar, sem cansar. Estava perdido em memórias, imerso nas palavras de Francis. Os sinais eram mesmo claros. De repente tudo fez mais sentido, mas minha vida antes do fim nunca teria me permitido entender as coisas como Francis as relatou. Eu estava isolado, perdido. E só descobri o fim quando ele bateu de frente com minha própria vida. Mas desde então, minha experiência é muito parecida com a de Francis, e suas próxiamas palavras descrevem uma realidade vivida por muitos.
Francis saiu às ruas no décimo dia e por muito tempo ele não viu nada. As ruas estavam desertas, as casas também pareciam desertas. Muitos carros estavam abandonados no meio da rua, a maioria batidos. Havia corpos também. Alguns estavam lá desde o começo, segundo Francis, pois apresentavam alto estágio de decomposição. O cheiro era forte e desagradável, mas ele passou por tudo aquilo sem falar nada. O silêncio era uma segurança. Naqueles dias, ele ainda não era um guerreiro.
Eduardo, seu irmão, carregava um facão, com lamina de aço e fio. Ele carregava apenas um bastão de madeira. Atravessaram um bairro inteiro naquela manhã. A sensação era como a de estar em uma praça de guerra.
Para onde ele pudesse olhar, era possível ver cápsulas de balas, corpos e destruição. Uma dezena de carros havia sido queimada até sobrar pouco mais de uma estrutura coberta de fuligem. As janelas das casas, vitrines de lojas e tudo o que era vidro estava quebrado e sujo de sangue. Ratos e baratas herdarão o mundo. Ao menos naqueles momentos eles eram soberanos. O caos estava logo depois da porta de sua casa, e agora ele estava no meio dele.
Faltavam poucos metros até o mercado quando finalmente encontraram alguém. Era um indivíduo gordo. Ele virou a esquina e deu de cara com Francis. Por alguns segundos, ninguém falou nada, ele lembra de ter firmado o pulso no cabo do bastão, mas o manteve abaixado. Foi então que percebeu que o homem estava muito assustado e não poderia lutar, pois em suas mãos, abraçadas junto ao peito, ele carregava uma grande quantidade de dinheiro, além de duas garrafas de bebida. Vodka, segundo ele.
Quando Francis tentou se aproximar para conversar, ele o insultou e começou a correr na direção contraria. Estava bêbado, Francis sentiu o cheiro fermentado de seu hálito mesmo com alguns passos de distância. Ele mijou nas calças quando os encontrou, formou até uma pequena poça. Depois que ele correu, Francis juntou algumas notas que ele derrubou e guardou em seu bolso. Eduardo também o fez, e depois riram de todo aquele absurdo.
Alguns passos depois, não estavam mais sozinhos. Assim como eles, uma multidão tomou coragem para deixar suas casas. Era um dia de furtos e saques, era um dia de loucura total. As portas do mercado haviam sido destruídas, mais tarde perceberam que foram atravessadas por um carro. Lá dentro, uma verdadeira batalha começou. As pessoas agarravam TVs, geladeiras, computadores e lutavam com unhas e dentes pelo direito de levá-los para casa.
Carrinhos lotados de eletrônicos passavam por eles, e as pessoas os olhavam desconfiadas, tentando esconder e proteger seus espólios. Seguindo um rastro de destruição, encontraram um furgão preto. As portas laterais estavam abertas e alguns homens armados o carregavam com todo o tipo de produtos eletrônicos que conseguiam. Eram DVDs, TVs, computadores, laptops, câmeras digitais, aparelhos de som, monitores, filmadoras. Sobre o furgão, um homem robusto portava um rifle. Ele gritava e cuspia para todos manterem distância. Ele girava e apontava a arma para todos que ameaçavam seu perímetro.
Francis olhava tudo sem saber o que pensar, não conseguia entender aquele absurdo. Ele previra o fim, ele previra o caos. Poucos dias antes ele sabia que teria que lutar pela sua própria sobrevivência, mas agora testemunhava com seus próprios olhos a realidade... Ninguém mais entendia o que estava acontecendo. Ele balançou a cabeça em desaprovação e foi aí que um dos carregadores foi em sua direção. Francis tentou esconder o bastão, tentou sair de seu caminho. Avisou Eduardo e pediu que ele se afastasse, não queria arrumar encrenca com homens armados.
Foi só quando parou ao seu lado que Francis percebeu que não era a ele que o homem queria. Seus olhos arregalados brilhavam em uma mistura de adrenalina e medo. Ele encostou sua pistola na cabeça de um senhor que estava o tempo todo atrás de Francis.
Ele tentou se afastar da confusão, mas a multidão queria chegar mais perto, então a massa o empurrou cada vez mais para dentro de um pequeno circulo onde os homens discutiam.
– Dê-me a câmera! - disse o homem armado em um tom imperativo.
– Não posso. - respondeu o senhor.
Aquela discussão continuou por mais alguns segundos, e poderia ter durado até a eternidade se a atenção do homem sobre o furgão não tivesse sido tomada. Primeiro, ele disparou alguns tiros para o alto, o que gerou pânico na multidão, depois mandou que todos se afastassem para ele ver o que estava acontecendo. Os homens continuaram pedindo a câmera, mas o senhor, que agora se dizia um repórter, negava o pedido. Sob a cobertura do homem do furgão, o outro tentou tomá-la à força.
Durou apenas uma fração de segundo. Um movimento brusco. Um tiro. Francis nunca entendeu o que o fez agir naquela hora, mas assim que viu o repórter se virar e sacar uma arma. Ouviu um tiro atrás dele. Sabia de onde vinha aquele tiro e sabia qual era seu destino, então simplesmente soltou seu corpo que segurava o peso da multidão e esbarrou no repórter, acabaram girando e levando consigo o homem que tentava lhe arrancar a câmera. Durou apenas uma fração de segundos, mas aquele homem nunca mais levantou. O tiro lhe atingiu a nuca e atravessou até sair pela frente do pescoço. A bala ainda atingiu o repórter no ombro, mas Francis só descobriu isso muito depois.
Ele estava no chão, com o peso de dois corpos sobre ele. Ouvia gritos e tiros por todos os lados. Via os pés correndo alucinados ao seu lado. Sentia dor, muita dor. Estava sendo pisoteado. Empurrou com sua única mão livre e tentou se livrar dos corpos, mas não tinha força suficiente e não conseguia achar apoio para se levantar. De repente tudo ficou mais leve e mais claro. Eduardo tirou os corpos de cima dele, mas antes mesmo de Francis se levantar, pode ver que ele estava lutando.
Ele nunca tinha visto uma lâmina cortar nada como aquele facão. Não foi bonito. Ao ver os membros sendo decepados pela lâmina afiada do facão de Eduardo, ele foi tomado por uma loucura incontrolável. Ainda sentia muita dor, mas o bastão em sua mão parecia clamar por ação. Sem perceber, começou a dançar e girar. Sabia cada passo e compunha cada golpe com o máximo de sua força. Tentava abrir caminho, mas Eduardo estava cada vez mais longe. E foi quando ele viu que estava tudo errado.
Não eram mais a mesma massa de pessoas que estava ali no começo. Ao avançar mais alguns passos em meio à multidão desesperada Francis pode ver duas ondas colidindo. Uma massa maltrapilha, com hematomas, ferimentos abertos e tomada por raiva invadiu o mercado pegando todos pelas costas. Eram os infectados. Ele avançou ainda mais e pode ver que as portas pareciam um funil, elas continham um incontável número deles lá fora, mas a cada segundo, dezenas conseguiam entrar.
Francis parou alguns segundos e tentou escalar uma prateleira, então viu o Eduardo lutando na linha de frente, pensou que não haveria saída. Pensou ser aquele seu fim. Pensou um pouco mais, então voltou até perto do furgão onde encontrou o cadáver do homem que tentara arrancar a câmera do fotógrafo, mas o mesmo não estava mais lá. Teve que empurrar, bater e abrir caminho com força para andar no meio da massa de pessoas, mas valeu a pena, pois a arma ainda estava caída no chão. Francis pegou a pistola e se virou na direção da porta na esperança de ainda encontrar o Eduardo lutando.
Ouvia constantemente os tiros sendo disparados pelos homens do furgão, inclusive os tiros de rifle, e por alguns segundos agradeçou por eles estarem lá, acreditando que poderiam conter aquela massa ensandecida. Mais uma vez, ele estava empurrando, batendo e gritando para abrir espaço, navegava no meio do mar de pessoas usando as placas do supermercado, ele sabia que Eduardo estava entre os caixas e a seção de congelados. Francis sentiu fome e se arrependeu disso, pois logo depois desse pensamento pode ver os reais efeitos da contaminação. Se tivesse algo em seu estômago, teria vomitado.
Agora ele via pessoas com o rosto dilacerado, órbitas vazias e sangue nos dentes. Agora via seus primeiros fantasmas, e eles estavam por todos os lados.
Francis encontrou Eduardo e foi até ele. Gritou seu nome uma vez, gritou seu nome denovo. Não queria chegar muito perto enquanto ele rodava o facão para manter todos afastados. Ele não ouvia. Francis não ouvia sua própria voz. Então levantou a pistola e atirou para cima. Foi um eco seco, mas todos se voltaram para ele e por poucos segundos, ele encontrou silêncio para dizer - Achei uma saída - Foi terrível! Aleijados, ensangüentados e desesperados, os infectados foram atraídos para Francis. Agora ele era o alvo e correu com o Eduardo para a saída de acesso à garagem.
Correram abrindo caminho entre as pessoas, sentiram que eles estavam logo atrás deles e por duas ou três vezes, ouviram o zunido dos tiros de rifle passarem perto deles para atingir os infectados que os perseguiam.
A saída para a garagem tinha uma grade de aço, mas ela estava aberta e presa por uma corrente. Algumas pessoas os seguiram, mas logo atrás delas o número de infectados era absurdo. Francis ordenou aos dois últimos homens que tentassem bloquear o caminho, mas eles continuaram correndo e Francis podia jurar que se não estivessem tão assustados, teriam rido na sua cara. Ele esqueceu isso e voltou para tentar fechar a porta, mas não tinha tempo para desenrolar a corrente, então atirou nela para partir os elos e após fechá-la, juntou dois elos inteiros e atravessou-os com seu bastão. Sabia que não duraria muito tempo, mas esperava que fosse o suficiente.
A última coisa que ele viu antes de descer, foi o homem, com o rifle sobre o furgão, morrer. Ele gritou quando seus pés foram agarrados, mordidos e puxados. Ele disparou tiros para baixo, mas já era tarde demais. Dezenas de mãos apertavam, arranhavam, e puxavam seus pés até onde outras dezenas de bocas podiam morder, esmagar e sangrar sua carne.
Descendo para a garagem, Francis insultou sua ignorância em tentar proteger, até o último segundo os equipamentos eletrônicos. Mas então lembrou que seus tiros salvaram sua vida e calou seus pensamentos.
No final da rampa, ele pode ouvir o bastão partindo e um estrondo da grade despencando, sentiu a pressão da loucura em sua alma, sentiu o medo fraquejar suas pernas, mas aquele ainda não era o último prego do caixão, pois foi só quando finalmente Francis ultrapassou a porta da garagem que ele rugiu em desespero. Tudo estava perdido...
10 ANOS
Essas são as memórias do fim. As memórias dos mortos. As memórias de um mundo que acabou. As palavras abaixo sobreviveram aos seus narradores, algumas contam a trajetória de Hector, outras, daqueles que cruzaram seu caminho. Ele jurou protegê-las com sua vida e agora elas estão aqui... Para toda a eternidade.
INSTRUÇÕES
CAPÍTULO 06
CAPÍTULO 05
As palavras de Francis lembravam as minhas que tantas vezes tentei escrever. Ele andava ao meu lado pela mata fechada que margeava a estrada, fora em alguns pouco momentos de silêncio nos quais ficavamos atentos a qualquer movimento estranho, ele narrava sua visão do fim. Eu desejei por muitas vezes poder anotar ou gravar tudo, mas ele me obrigou a confiar em minha memória, e confiei. Depois descobri que aquelas palavras nunca mais sairiam da minha cabeça.
Quando começou, todos puderam acompanhar de suas casas. O fim estava na TV, na internet, no rádio. Cada centímetro do planeta era coberto pela mídia. A humanidade estava apavorada, mas ainda nem sabia ao certo porquê.
Uma contaminação em escala global, toques de recolher em quase todas as cidades do planeta, barreiras entre estados, polícia e exército nas ruas, saques, brigas e fanatismo religioso. Tudo estava "no ar". E por um tempo não foi real. A realidade estava para fora da porta da casa da maior parte da população. Era mais um programa de TV.
Naquele momento, os sinais ainda não eram claros, poucos foram os homens que perceberam a ameaça. Grande parte das pessoas discutiu as notícias como um grande "quebra-cabeças" e não percebeu quando o fim bateu a sua porta.
Durante alguns meses antes da contaminação global, o mundo testemunhou fatos isolados que indicavam o que estava por vir. Aconteceu primeiro na África. Redes de notícias internacionais, fundamentadas em boatos que corriam soltos pela internet, descobriram pelo menos uma centena de cidades e povoados fantasmas. As casas ainda estavam lá, algumas ainda estavam limpas, as panelas no fogão com o gás já extinto, torneiras abertas, telefones fora do gancho e carros abandonados no meio da rua. Apenas algumas poucas delas, e as últimas a serem descobertas, apresentavam sinais de lutas e destruição. Sangue não foi encontrado.
A curiosidade humana ainda não havia sido totalmente conquistada pelo mistério africano, até que toda uma equipe de jornalistas ingleses, da BBC, desapareceu. O mundo não se importava com cidades inteiras da África, mas a busca pelos repórteres acabou por acender a chama da curiosidade.
Redes de notícias do mundo todo mandaram seus representantes para lá. A internet foi tomada por teorias da conspiração, discussões inflamadas sobre abduções coletivas e o fim dos tempos. Algumas facções religiosas apontavam o fato como punição divina, outras apontavam como um milagre. A seleção de Deus para povoar o paraíso, e assim, milhares de pessoas do mundo inteiro migraram para a África na esperança de serem escolhidas também. As cidades fantasmas africanas despertaram tanta atenção, que as pessoas não foram capazes de perceber que o mal se espalhara.
O aumento da violência nas grandes cidades não chamava atenção suficiente da mídia, poucos relatos foram registrados, mas alguns deles se tornaram, de forma assustadora, um mapa da contaminação.
Poucas pessoas leram sobre uma senhora idosa que foi presa por matar o filho, a nora e os três netos, de 12, 8 e 6 anos respectivamente. Segundo ela, para os registros oficiais, eles haviam sido possuídos pelo demônio. Primeiro teria sido sua nora, ela a viu atacar o marido. No começo imaginou ser apenas uma depravação sexual, mas então percebeu que havia sangue por todo o lado e que seu filho havia sido mordido até quase a morte, quando tentou fugir, acabou sendo encurralada em seu quarto, seus netos a perseguiam com ódio nos olhos e sangue na boca, "eram cães raivosos" declarou a matriarca assassina que empunhou o revolver calibre 38 do falecido marido para exterminar a família. "Nunca aprovei o casamento.", disse ela para encerrar a declaração.
Esse não foi um caso isolado, na época era comum encontrar matérias sobre assassinos em série, pessoas desaparecidas, conflitos armados entre vizinhos, crimes passionais (louco de ciúmes, dizia uma das manchetes) e histórias mais bizarras como a do açougueiro canibal. Um pai de família de 42 anos mata sete clientes com mordidas, alguns tiveram os olhos, o nariz ou até mesmo os lábios arrancados. Uma matéria publicada no dia seguinte revelava que o filho do açougueiro estava desaparecido e que assim como o seu próprio, os corpos das vítimas sumiram do necrotério.
Naquele mês, os pássaros migraram para o sul. Era inverno. Os pássaros migraram rumo ao frio. Eventos curiosos como esse também foram noticiados. Um jornal argentino publicou uma extensa matéria sobre uma infestação de gatos e ratos na Patagônia. Curiosamente, dois dias depois de uma massiva invasão de ratos na região, os gatos começaram a chegar. Por algum tempo, as pessoas agradeciam aos gatos que exterminaram a maior parte dos ratos, mas eles continuaram chegando. Alguns moradores que tentaram alimentar os animais tiveram suas casas invadidas por dezenas de bichanos. As ruas estavam infestadas e eles atacavam tudo o que era vivo para comer. Seres-humanos viraram comida de gato. Então tudo ficou sério demais. Os gatos foram caçados e aniquilados por uma força tarefa do exercito.
Mas mesmo assim, as pessoas continuavam em suas casas, presas pelo toque de recolher, acompanhando por seus televisores o mundo que ruía a sua volta. A verdade estava nas ruas. A verdade estava na frente de qualquer um. Mas muitos ainda agradeciam à crise os dias de folga do trabalho. Agradeciam e voltavam para frente da TV, onde o colapso do planeta era a atração principal. E foi assim que muitos morreram. Quando o sistema de TV saiu do ar, as pessoas estavam com sua noção de realidade abalada. Não haviam percebido que a contaminação fugira ao controle, e muito menos sabiam do que se tratava a "contaminação", pois em nenhum momento, a mídia que apenas transmitia o caos que se espalhava pelas ruas, conseguiu chegar perto o bastante para entender aquela ameaça.
Foram dezoito dias desde as primeiras cidades decretarem estado de calamidade pública. Dezoito dias até a humanidade ruir. Tomando-se por base o mistério das cidades-fantasmas africanas e os registros relatados acima, esse período abrange cerca de quatro a seis meses. Durante todo esse tempo, nada foi feito. Nenhuma atitude preventiva, de combate ou medida evasiva foi tomada. Após o toque de recolher, a maioria dos países passou a ser controlado pelas forças armadas e a população pode ver a nação morrer pela tela da TV.
Um ano atrás.
Um ano lutando.
Um ano tentando entender.
Milhares de livros contam a história da humanidade, desde sua origem até seus grandes impérios. Milhares de páginas escritas para a eternidade, com conquistas dos homens através dos tempos. Milhares de anos evoluindo, criando ferramentas e tecnologia. Milhares de anos moldando o mundo para a total soberania da raça humana.
Para inúmeros habitantes do planeta, sejam de qualquer raça, credo, região ou classe, imaginar o fim era algo impossível. A humanidade era segura de seu domínio sobre a Terra, mas mesmo assim, calculava que seu fim estava próximo.
A autodestruição era única ameaça, mas ninguém imaginava o fim como ele ocorreu. As teorias sobre o fim do mundo revelavam alarmantes efeitos do aquecimento global, apresentavam o efeito estufa, a emissão de poluentes e o desmatamento como causas de desequilíbrios na natureza e contavam os dias para uma suposta tragédia climática, caso a ocupação nociva da raça humana sobre o planeta não fosse drasticamente abrandada.
Pois ela foi...
Somos poucos agora.
O planeta está vivo. Está se recuperando.
Mas nós estamos morrendo, bem como nossa história.
Pela primeira vez não pudemos fugir, não pudemos ficar indiferentes. Mesmo nas primeiras horas a contaminação já era global. E em poucos dias estava dentro de nossas casas. Não havia cura ou salvação. Não havia dúvida ou esperança. Era o fim da humanidade. O Apocalipse estava "ao vivo" em todos os canais.
Assim como Francis, ainda hoje tenho pesadelos, e todos envolvem os primeiros dias do terror. Ainda vejo os rostos machucados, inchados e marcados de ódio. Ainda acordo ofegante no meio da noite e acredito que tudo está perdido. Ainda hoje consigo chorar quando lembro das pessoas que nunca mais verei... E ainda hoje lembro da expressão de raiva dos primeiros que matei.
Acho que nunca poderia relatar a realidade desses dias com a frieza de Francis. As coisas não são mais as mesmas em minha cabeça. Os sons são os mesmos. Tudo começou com gritos distantes e foi crescendo. Lembro de ouvir freadas no asfalto e um pouco de discussão, depois mais gritos, muitos gritos. Poucas horas se passaram até as ruas serem tomadas pelos sons de tiros, brigas e pelos gemidos agudos dos infectados. As imagens, porém, não são mais tão claras. Minha mente transformou as memórias e os rostos retorcidos em faces da morte. Vejo os olhos profundos dos fantasmas, quase órbitas negras. Vejo os dentes arqueados para fora e o desespero, aquilo que depois começamos a chamar de fome.
Francis falava claro. Ele lembrava de tudo.
Os três primeiros dias foram de caos e terror. As pessoas que ainda se negavam a acreditar na epidemia acabavam contaminadas e abriam as portas de sua casa para a morte. As ruas estavam tomadas por enfermos, policiais, militares e alguns poucos homens que se juntavam para tentar proteger as famílias, mas o número de infectados crescia a cada hora e não podia ser enfrentado.
Entre o quarto e o oitavo dia, uma verdadeira guerra se espalhou pela cidade, as pessoas que haviam respondido ao toque de recolher, começaram a se sentir entediadas em suas casas e decidiram lutar. Havia uma esperança sólida na alma de todos que dizia que o pior já havia passado, mas o número de infectados quase triplicou depois dessa atitude, acabando por aniquilar qualquer capacidade de reação militar.
Do oitavo ao décimo dia, uma trégua era percebida. Não havia mais tiros, gritos, lutas e mortes nas ruas. Quem estava em casa podia jurar que a paz voltara a reinar. Mas a verdade é que não havia lutas, pois os infectados apenas perseguiam as pessoas saudáveis, e naqueles dias, estavam todos escondidos em suas casas.
Na noite do nono dia, a TV saiu do ar. Sem saber o verdadeiro status da contaminação e perdendo sua única janela com o mundo, as pessoas voltaram-se para as janelas da vida real. Naquele momento, as cidades-fantasmas africanas voltaram a ser a pauta de todas as discussões. Como aquelas cidades inteiras sumiram do dia para a noite, agora as pessoas olhavam de suas janelas e acreditavam que todo o mal que as assolara também havia sumido. Então, no décimo dia, Francis saiu às ruas para procurar comida.
CAPÍTULO 04
Não sei dizer quantos segundos levei para recuperar minha consiência, mas assim que entendi o que havia acontecido, também percebi que minha pistola já estava em punhos, acho que esse era meu reflexo mais rápido e mais importante. Consegui ouvir alguns sons distantes, alguns gritos. Mas tudo era tão abafado que os sons passavam pela minha cabeça como rajadas de vento passam por uma fresta. Eu ainda estava deitado no meio do metal retorcido, tentando manter meus olhos abertos e focar alguma coisa quando fui puxado e arrastado para fora da caminhonete por onde antes ficava seu para-brisas.
Me retorci todo tentando levantar sozinho, instintivamente tentei lutar, mas pouco antes de levantar a arma, percebi que era Cotovelo quem estava me puxando, então relaxei um pouco meu corpo e ele me ajudou a levantar. Meu braço estava inteiro vermelho e molhado de sangue, mas ainda não havia sentido nenhuma dor. Eu via os pedaços de vidro enterrados nele e os puxava para fora com naturalidade enquanto andava apoiado nos ombros de Cotovelo. Tive a impressão que o para-brisas todo estava enterrado no meu braço, mas lógico que isso era um exagero, eu estava apenas em choque, e como não era a primeira vez, sabia que aquilo ia doer muito algumas horas depois.
Cotovelo me colocou sobre o capô do Dodge e correu para ajudar Nove-Contos, que apesar de não ser tão parrudo quanto o colega, carregava Francis sozinho. Quando pensei em correr ajudar, Francis despertou e chutou os dois para longe dele. Ele já estava revigorado e, como era de se esperar, extremamente irritado. Francis é exatamente o tipo de pessoa que não gosta de perder, que não sabe perder, e naquele exato momento, ele havia acabado de perder um caminhão, sua caminhonete, um punhado de bons soldados, dois batedores, dezenas de armas e equipamentos além da batalha para qual havia se preparado.
Ele andou até o carro bufando. Sua cabeça estava vermelha e tinha um corte que descia do alto da testa até o fim do nariz. Nas suas mãos, ele carregava a escopeta que estava na caminhonete. Ele primeiro apontou para Nove-Contos e Cotovelo e mandou os dois entrarem no carro imediatamente, depois olhou para mim e pediu de forma mais gentil, ou seja, as mesmas palavras sem me apontar a arma.
Assim que entrei naquele carro, lembrei que poucas horas antes, havia acordado em uma das camas macias do abrigo de Durval, lembrei que estava me sentindo estressado e reclamei de dor nas costas, lembrei que uma simples dor-de-cabeça estava me impedindo de escrever e que estava enjoado e não queria viajar. Assim que Nove-Contos acelerou o potente motor V8 e partiu cantando os pneus deixando para trás o cheiro de borracha queimada e uma nuvem de fumaça que se misturava aos destroços, lembrei que não sabia tocar violino, mas também lembrei nada disso importa mais. Eu sou um guerreiro e estou exatamente onde quero estar.
Nessa manhã voltei a sentir o cheiro de sangue.
Estacionamos o carro em uma pequena clareira, repleta de quiosques e churrasqueiras, alguns kilometros antes na estrada. Algum tempo atrás, famílias inteiras passavam seus finais de semana alí, na beira do rio, pescando e curtindo a natureza, agora somos apenas eu e Francis, aproveitando a água para limpar os ferimentos.
– Os filhos da puta minaram a estrada! Disse Nove-Contos ainda agitado – Só pode ser isso. A porra do caminhão levantou do chão!
– Aqueles merdas tem lança-foguetes? – Perguntou Cotovelo.
– Não! Cara! Levantou do chão! Tinha que ser uma mina!
Enquanto os dois discutiam, percebi que Francis estava me olhando. Até agora eu ainda não havia perguntado sobre nosso destino, e como tudo parecia perdido, essa era a hora! Eu sabia que seu silêncio escondia algo, agora eu sabia que ele precisava de mim. Agora eu sabia que ele não poderia esconder mais nada.
– Sabe Francis... Aconteceu há muito tempo atrás... – Comecei e fiz uma pequena pausa, esperando sua atenção – Eu estava dirigindo por essa avenida larga, uma daquelas cheias de pistas e de alta velocidade, alguns metros na minha frente havia um outro carro. Eu estava na pista da esquerda e ele na do centro. Cem metros na nossa frente, o semáforo ficou amarelo e eu comecei a reduzir, esse outro carro acelerou. A gente estava chegando perto do cruzamento mas ficando cada vez mais distantes um do outro, ele acelerando e eu freando. Eu sabia que fecharia antes dele passar, mas seria rápido como sempre acontece. E fechou, ele furou. Por uma simples brincadeira, bati a mão na manopla do cambio e fiz com a boca um som de explosão, mas nesse exato segundo, ou nessa exata fração de segundo, um carro surgiu da trasversal e os dois colidiram. Um capotou várias vezes, por vários metros antes de parar como uma pilha de metal retorcido, o outros parou alí, esmagado como uma barata no asfalto, compacto como uma lata amassada. Seis pessoas morreram. No carro que estava à minha frente, um casal, e no outro, uma família inteira. Foi simples. Foi gloriso. Assim é a morte. Assim é a vida. Nenhum dos dois freou. Nem por um segundo. Foi rápido demais. Sem aviso, sem despedidas, sem grandes questões. Apenas acontece. Como uma bala na nuca. Você nunca sabe quando e como a morte chega da mesma forma que você nunca sabe quando e como a vida acaba. É só a perspectiva que muda. Se você pensa na morte que vem, você vive com medo. Se você pensa na vida que vai, você vive com liberdade. Uma vida também precisa do fim para ser completa.
Terminei de enfaixar meus braços, acreditando que não restara nenhum pedaço de vidro enterrado nele para me atormentar depois.
– É assim que eu vejo as coisas agora...
– Ninguém deveria morrer hoje. Minha estratégia era intimidar.
– Acho que está na hora de você me contar... Tudo! – Falei encarando seus olhos cinzas e seu rosto vermelho.
Francis se afastou do rio e caminhou em direção ao carro, abriu o porta-malas e começou e abastecer sua mochila. Nove-Contos e Cotovelo ficaram parados observando. Caminhei até ele e pude ver que o porta-malas nada mais era que um grande depósito de armas e munição. Havia de tudo lá dentro.
– Pegue tudo o que você consegue carregar a pé. – Disse Francis – Pegue água também, e o que você precisar para seus curativos. São quatro dias de viagem em frente, Hector, terei tempo para te contar tudo.
Francis mandou Nove-Contos e Cotolevo voltarem para o abrigo, segundo ele, como era planejado, mas ordenou que não deveriam contar a ninguém sobre o ocorrido. Tudo deveria continuar como fora planejado e dentro de quatro dias, eles deveriam partir com os voluntários para a estação. Eu estava apenas começando a entender a situação. Olhando para a água do rio, adivinhei nosso destino e finalmente tudo se encaixou. Vamos matar homens. Não fantasmas, infectados sem alma, mas homens que se apropriaram das estações de tratamento de água e que por algum tempo moraram lá, que reativaram tudo e forneceram para nosso resto de sociedade uma esperança de sobreviver. Vamos caçar e matar esses homens pois eles se tornaram uma ameaça à nossa liberdade. Eu sabia que isso iria acontecer.
Um homem nunca escapa de sua própria guerra. Essa era a minha.
Matar traz uma sensação de poder que não pode ser compreendida. Quando senti isso pela primeira vez ainda era quase macio e fraco como uma criança. Minhas mãos eram lisas e meus dedos finos. Meus braços não tinham quase nenhum músculo e ainda estava acostumado a comida farta e variada, sempre quente e limpa. Apertei meus curativos mais uma vez e empenhei toda minha atenção naquele porta-malas.
Meus braços doem. Mas estou feliz.
O peso da pistola, a força do recuo provocado pelo disparo, o punho de um facão, a sensação de rasgar a carne. Essas coisas penetram pelas minhas mãos, tomam minha corrente sanguínea e explodem no meu coração.
Nove-Contos quase perdeu o controle de tão contrariado, mas preferiu partir bufando e gritando palavras de revolta a desobedecer Francis. Cotovelo apenas observava perdido e suava. O carro sumiu na estrada e eu e Francis ficamos sozinhos.
– Você já sabe para onde estamos indo, certo?! – Ele perguntou sério.
– Sim.
– E sabe que vamos sozinhos?!
– Sim.
– Sabe, esse era meu plano original. Chegar na surdina e matar todos, tomar a estação e colocar meus homens lá, mas algumas pessoas, – Disse ele com scarnio – considerariam isso muita brutalidade. Mas olhe agora... Temos mais de trinta mortos nas costas e ainda vamos partir para a brutalidade. Acho que ninguém faz questão de abrir os olhos e ver o mundo em que estamos vivendo, mesmo depois de tudo.
– Isso não é novidade. E é uma das razões pelas quais prefiro estar sozinho.
– Mentira. Eu sei porque você está sozinho Hector, e sei que você não está fugindo, você também está caçando. Eu sei que você esteva no presídio quinze dias atrás. Eu sei o que você está procurando.
Os últimos quinze dias pareciam outra vida depois das últimas horas, mas eles estavam lá, no fundo da minha cabeça apenas esperando para me atormentar. Francis sabia disso. Ele precisava provar que havia pensado em tudo.
– Eu posso ajudar você, e podemos acabar juntos com isso, mas antes preciso da sua ajuda, aqui e agora. – Disse Francis já sabendo qual seria minha resposta, mas eu nem precisei abrir minha boca, apenas continuei em frente em silêncio.
Ele me acompanhou, mas não em silêncio. Pela primeira vez em tanto tempo, Francis estava disposto a falar. Francis era uma lenda, e lendas nascem a partir de mistérios sem respostas. Francis era um sobrevivente único. Era um herói da própria existência. Muitos deviam suas vidas a ele. Agora lutavam e matavam por ele. Muitos também morreram por ele. Mas fora Mariana, ninguém o conhecia. Até agora, pois foi em suas palavras que encontrei uma das mais lúcidas e detalhadas memórias do fim.
CAPÍTULO 03
Todos riam, mas suas armas continuavam apontadas para mim, assim como o olhar do homem misterioso no centro do bando. Seu nome é Francis e seu olhar encontra diretamente com o meu de uma forma tão profunda que parece atingir minha alma. Seus olhos são claros, quase cinzas, estão semi-cerrados e seus sorriso parece revelar mais crueldade do que alegria. Sim, esse é Francis. Por alguns instantes, penso em fechar meus olhos para evitá-lo, mas antes disso ele fecha seu sorriso e levanta sua arma, calando a todos em sua volta. Ele caminha em minha direção, o silêncio é intransponível. Sua mira está baixa, mas seus olhos mostram que ele não hesitaria a reagir se fosse preciso. Acho que apenas seu olhar gelado já seria letal o bastante em alguns casos, mas eu o conheço o bastante, assim como ele me conhece, e nós nunca somos os mesmos sem armas na mão. Somos dois cães malditos com maldade no peito e falsidade na cara. Mas agora ele é o cão que lidera a matilha e eu sou o vira-latas... Já foi diferente antes. Muito tempo atrás. Alguns passos a mais e Francis para. Pela primeira vez ele quebra o olhar que me paralisava. Ele apenas fita os olhos curiosos de Durval por um breve segundo e esse baixa a cabeça e começa a tremer.
- Suma daqui Durval! - As palavras de Francis soaram como tambores e fizeram a terra tremer, ou ao menos tremeu quando Durval partiu em disparada, correndo aos tropeços apavorado sem olhar para trás - E você, Hector, antes de mais nada, guarde essa arma. Você não precisa dela aqui.
- Isso foi dramático demais até para você. - Disse tentando quebrar o gelo daquele momento.
Francis guardou a sua pistola em um coldre lateral. Guardei a minha mas fiz questão de mostrar que deixei o coldre aberto. Nos olhamos por alguns segundos, então Francis abriu um sorriso e me estendeu a mão para um cumprimento. Estendi a minha em resposta, mas fui puxado para perto dele e golpeado com uma forte cabeçada no nariz. Foi como se a luz do dia tivesse sido roubada. Tudo ficou escuro de repente e a dor correu meu corpo todo. Ele ainda seguarava minha mão e não me deixou cair no chão, então enquanto tentava me equilibrar e continuar de pé, ele se aproximou um pouco mais para sussurrar em meus ouvidos.
- Isso foi pela minha irmã. Lembranças da Mariana. Aceite e acaba aqui. Se reagir vai ser pior. - Assim que ele soltou minha mão, levei-a até meu rosto e pude sentir o sangue quente escorrer do nariz que latejava.
- Ah! É bom te ver... Também. - As palavras sairam abafadas.
- Nunca é bom te ver. Você só tráz problemas!
Francis me deu as costas, então dois de seu capangas me ajudaram a levantar. Não sei seus nomes verdadeiros, na verdade, acho que nem eles se lembram mais. Nomes, como muitas outras coisas, também ficaram para trás. Nove-Contos e Cotovelo, é assim que Francis os chama, e é por esses nomes que eles repondem agora. Levei minha mão ao nariz novamente. O sangue continuava escorrendo. Agora escoltado por Nove-Contos e Cotovelo, eu tentava andar apressando o passo para me aproximar de Francis. Permanecia com a cabeça erguida e tentava respirar, minha mão já estava toda suja de sangue e meus olhos lacrimejavam. A dor passou. A dor passa cada vez mais rápido.
- Francis! - Chamei ainda com minha voz abafada. - Mas que diabos deu em você?!
Seus olhos cinzas olharam para mim novamente. Percebi que ele reparou em meu nariz sangrando e em minha mão suja. Percebi que ele tentou me olhar nos olhos, mas eles estavam ardendo o suficiente para ficarem mais fechados do que abertos. Silêncio. No último ano aprendi que o silêncio existe. Em nenhum momento de toda minha vida antes do fim havia experimentado um silêncio verdadeiro, agora ele é comum, é confortável. Mas não esse silêncio. O silêncio de Francis é um silêncio diferente. É o tipo de silêncio que apenas será quebrado quando houver forças suficientes e as palavras certas para uma notícia ruim. É algo desconcertante. Nesses breves momentos de silêncio, pensei em Mariana, sua irmã, e acreditei que ela estava morta. Minha cabeça girou por alguns segundos enquanto imaginava como isso teria acontecido. Lembrei de muitos bons momentos que passamos juntos e também de seus sorrisos. Então lembrei do dia em que a abandonei... Conseguia sentir a dor de Francis e sua raiva por mim. Pensei que a culpa poderia ser minha e senti remorso. Senti meu nariz latejar e então achei que merecia sofrer, mas tudo isso passou pela minha cabeça em um breve momento de silêncio, esse momento acabou e as palavras de Francis nos levaram para longe dalí. Mais uma estrada, mais uma guerra, eu imaginava o que estava por vir.
Do outro lado da praça um comboio completo nos aguardava, não tive muita chance de argumentar enquanto Nove-Contos e Cotovelo me empurravam para dentro da caminhonete de Francis. Ainda com meus olhos ardendo pude ver seus homens embarcando, todos fortemente armados, em um caminhão de carga logo na nossa frente. Dois motoqueiros partiram primeiro, eles vão e voltam pela estrada procurando armadilhas que possam ameaçar o comboio, são batedores. Ao lado da caminhonete, Nove-Contos e Cotovelo aguardavam em um Dodge Dart preto com um motor V8 que roncava alto e fazia minha cabeça latejar. Francis andou de um lado para o outro distribuindo ordens antes de entrar na caminhonete, e quando o fez, me entregou um rifle e uma escopeta junto com uma sacola de munição. Nosso histórico era conturbado, mas sentia que podia confiar nele, e acho que ele sabia que podia confiar em mim, ao menos podia confiar em minha mira.
As palavras de Francis nesse dia eram tão amargas que sua feição retorcia a cada uma delas. Ele esperou para falar comigo quando ficamos sozinhos. Eu ainda pensava em Mariana, preocupado, mas ele me garantiu que ela estava bem e cortou o assunto rapidamente. Aceitei sua resposta e agradeci por ela. A última coisa que queria naquela hora era remoer meu passado. Não sabia qual seria o nosso destino naquela tarde, ainda não sabia, mas imaginava. Estavamos sozinhos na caminhonete de Francis, seguidos de perto por seus homens, seus melhores soldados. Entre esses, brutamontes como Cotovelo e safados como Nove-Contos. Não era algo que poderia ser chamado de boa companhia, mas talvez fosse a única companhia segura, pois todos aqueles arruaceiros maltrapilhos e fedorentos eram sobreviventes como nós, mas não eram líderes e por isso precisavam de Francis e seguiam cada uma de suas ordens como se ele em pessoa fosse a única lei que restara.
- Alguma vez você se sentiu livre antes?! - Me perguntou Francis após alguns kilometros de estrada.
- Antes? - Devolvi a pergunta, mas sabia bem o que ele queria dizer - Nunca. - Essa foi minha resposta na ocasião, e ainda hoje ela seria a mesma.
Eu olhava para a estrada vazia, olhava para o horizonte distante brilhando onde o ar começava a dançar, distorcido pelo calor, sentia que não haviam limites. Sentia o vento na minha cara e em meus cabelos e tinha vontade de sorrir. Sabia que minha vida era responsabilidade minha, mas estar vivo era um mérito, um motivo de orgulho. Sim. Eu sentia a verdadeira liberdade naquele dia, mas as idéias de Francis, e sua pergunta buscavam algo mais em minha resposta.
- Antes do fim... Antes de tudo não havia essa liberdade. - Ele continuou - Somos todos livres agora, menos aqueles que se entregam ao medo.
- Eu tenho medo Francis, mas é enfrentar meus medos que me mantém vivo.
- Não Hector. Não é desse medo que estou falando. Se você está aqui hoje, vivo, você precisou lutar por sua vida, ninguém que está aqui poderia ter sobrevivido sem matar alguém. Alguns de nós matamos nossas próprias famílias. Eu matei metade da minha família para me salvar. Matei meus pais para salvar a Mariana.
- Você vai me contar sua história? - Perguntei surpreso depois de um breve silêncio - Talvez essa não seja a melhor hora.
- Esse seu livro, Hector, talvez seja o último livro da humanidade...
- Talvez.
- Então não estrague.
Francis voltou a perder seu olhar na estrada e o silêncio se fechou sobre nós por um longo tempo. Ele nunca havia mencionado meu livro antes e, sinceramente, ele era a última pessoa que eu imaginava se importar. Qualquer palavra sua que demonstrasse algum interesse deveria ser considerada um elogio absoluto. Sem saber para onde aquela estrada nos levava, não sabia quanto faltava para chegar, mas se Francis desejasse mesmo me contar sua história, tenho certeza que nenhuma estrada seria longa o suficiente. Ele era uma homem bruto e fechado, mas era uma lenda viva. Sabia algumas coisas de sua história, mas não os detalhes e sempre são os detalhes que fazem toda a diferença. Pensei em levar a conversa adiante, tomado pela minha curiosidade, mas não me sentia capaz de escrever uma história grande como a dele. Decidi me calar, e melhor, decidi calar meus pensamentos.
Após passar por algumas longas planícies, a estrada começou a subir em uma serra sinuosa. Meus ouvidos ficaram entupidos com a mudança de pressão. A viagem ficou mais difícil e desconfortável. Não era possível saber o que nos esperava atrás de cada curva e como a caminhonete de Francis liderava o comboio, nossas vidas estavam na linha de frente.
– Onde se meteram esses malditos batedores? - Disse Francis resmungando - Puta merda! Bastardos, vira-latas de merda!
– Acho que você deveria parar. Podemos seguir a pé por algum tempo. limpar a estrada até o fim das curvas. Somos um alvo fácil assim.
– A pé?! Nunca. Não vou arriscar perder meus homens no meio desse ferro-velho, cemitério, ou seja lá o que for, que algum dia foi uma estrada.
Os carros destruídos e enferrujados margeavam quase toda a extenção da estrada. Alguns deles estavam carbonizados mas muitos dos corpos já haviam sumido. Quando tudo começou, as pessoas partiram para as estradas, acreditando que a ameaça era somente local. Essas engarrafaram e viraram armadilhas para milhôes que tentavam fugir da contaminação. Além disso, o exército também fez sua parte quando uma força-tarefa foi designada para fechar as vias de acesso para saída ou entrada das grandes cidades, a idéia era boa, isolar os focos de contaminação e combatê-los separadamente, mas na prática, soldados assustados chacinaram famílias inteiras apavoradas e tudo virou uma grande bagunça, no meio dos gritos e da correria, as balas dos militares foram escassas e em poucos dias toda a força-tarefa estava morta ou infectada. Francis tinha razão, de certa forma. Apenas por estar naquela estrada, já estávamos correndo riscos, mas pelo menos enquanto os homens estivessem dentro do caminhão, não teríamos pânico e nem balas-perdidas. A verdade é que o medo é um aliado do fim. Homens com arma na mão e medo na alma sempre fazem merda.
– Quantos kilometros os batedores cobrem em frente? – Eu perguntei enquanto imaginava qual a desgraça que nos aguardava.
– Cinco. Talvez seis... Já deveriam ter voltado faz tempo. São moleques. Que merda, apenas os moleques aceitam ser batedores. Sabe como é... Tem que pegar os malucos.
Durante todo o caminho os batedores iam e vinham. Chegavam com suas motocicletas, sinalizavam duas vezes com o farol e depois viravam as costas para se perder na estrada enquanto comboio seguia em frente. Isso acontecia a cada dez ou quinze minutos, mas agora meia-hora já estava passando. É fato que diminuimos a velocidade na subida, mas mesmo assim, a distância que percorremos já era suficiente para encontrá-los, não importa o que pudesse ter acontecido.
Francis reduziu ainda mais a velocidade e acenou para o motorista do caminhão, esse acelerou até emparelhar conosco. Atrás de nós, no centro da pista, seguia o carro preto com Nove-Contos e Cotovelo, pelo espelho retrovisor eu podia ver suas carrancas malvadas.
– Eles não voltaram. Tem alguma coisa em frente. – Francis gritou, para sua voz ser ouvida pelo motorista do caminhão.
Reduzimos ainda mais a velocidade e o caminhão entrou na nossa frente com seu motor roncando forte. Ele estava acelerando tudo o que podia. Não entendi muito bem e acho que resmunguei alguma coisa, pois Francis começou a narrar para mim o que estava acontecendo.
– Seja o que for que esteja lá na frente, vai virar sucata... Esse caminhão passa por cima de qualquer coisa. Eles vão ver, vão ver só... Não deveriam se meter comigo.
Enquanto Francis falava, eu apenas reparava nos seus soldados na traseira do caminhão. Eles tentavam se segurar em alguma coisa enquanto eram jogados de um lado para o outro em cada uma das curvas fechadas da estrada. Enquanto acelerava, o caminhão esbarrava em sucatas abandonadas na estrada e os homens despencavam dentro dele com cada impacto. Coitados. Imaginei o que aconteceria com eles caso houvesse uma barreira a frente, caso o caminhão estivesse mesmo em rota de colisão. Seria uma desgraça. Mas minha imaginação não é tão fértil assim, pois a realidade sempre pode ser pior.
Foi tudo muito rápido. Senti primeiro o frio na barriga e perdi a respiração. Depois tudo tremeu. O pouco tempo em que meus olhos ficaram abertos apenas me deixou ver o caminhão levantar ao ar como uma pluma e então a bola de fogo o consumiu por completo enquanto os pedaços de corpos e ferragens voavam em nossa direção como meteoros em chamas. O som foi ensurdecedor, depois senti a onda de calor e nossa caminhonete também levantou do chão e capotou.
Eu tinha certeza que estavam todos mortos...
CAPÍTULO 02
Reviro minhas anotações logo pela manhã...
Onde estou?
Não sei mais dizer.
As cidades agora parecem todas as mesmas e sinto que minhas viagens já perderam o sentido.
Nessa manhã preciso viajar para o leste, mas acordei enjoado e não quero pegar a estrada, então resolvo me dedicar a organizar o material dos últimos dias. Na verdade, precisaria organizar o material do mês todo. Faz tanto tempo agora. As vezes me surpreendo. Quase um mês... Segundo meu diário de bordo, hoje faz exatamente vinte e três, não, vinte e quatro dias que estou fora de casa. Ou melhor, faz esse tempo que comecei minha jornada, pois, casa eu não tinha.
Carrego comigo um diário, cujo qual utilizo para me organizar, dois cadernos que utilizo para escrever as histórias que me contam, fazer anotações importantes, desenhar e coisas assim, uma pasta repleta de fotos, mapas, listas e dezenas de outras coisas que as pessoas me confiam, um gravador, que utilizo quando tenho baterias e mais uma mala com tudo que possa me ajudar a preservar as memórias de algo que acabou.
O céu está nublado e o sol não aparece. Mesmo com o passar das horas, a luz lá fora continua fraca e a janela do quarto não é suficiente para clareá-lo. A camada de poeira que cobre os vidros deixa minha mão preta quando tento limpá-los. Com o dedo indicador da mão direita desenho três letras no vidro sujo. Três letras que formam a única palavra que não sai da minha cabeça: "FIM".
Precisaria de velas para poder escrever, mas não posso me dar ao luxo de usá-las agora, então posiciono meu diário logo abaixo da janela onde existe uma claridade considerável.
Quando está tudo pronto, não consigo escrever. Faz quinze dias que não escrevo nada. As palavras passam pela minha cabeça, frases inteiras são formadas em um piscar de olhos e perdidas em outro. Vejo claramente todos os fatos. Vejo tudo em minha mente. Tantas pessoas, tantas vidas cruzaram meu caminho. Não sei por onde começar e não me sinto capaz de completar essa tarefa.
Um dia nublado em um quarto escuro. Estou perdido.
Acho que nunca me senti assim antes.
Quando tudo começou, passado o pânico, ainda havia uma esperança de que aquilo seria superado. Eu sentia uma coragem e uma brutalidade queimando em meu peito. Eu queria lutar. Queria salvar o mundo todo com minhas mãos e acreditava que isso era possível. Isso aconteceu a pouco mais de um ano. Apenas um ano... Mas quando olho para trás, vejo uma eternidade de dor e morte.
Isso é parte da história que quero contar. A história que preciso contar.
Eu vi o mundo mudar. Vi tudo acontecer. Sobrevivi.
Enfrentei todos os meus medos, meus fantasmas e meus demônios, mas agora não consigo completar a tarefa mais simples que me foi confiada. Não consigo.
Quanto tento me concentrar, sinto dor em minhas costas. Penso no peso que tenho que carregar todos os dias. Penso nos doze lances de escada que preciso subir até chegar nesse abrigo. Penso na minha posição desconfortável sentado na cama me esticando para alcançar a luz da janela. Penso em tudo o que desvia minha atenção. Então descubro que estou com frio. Descubro que estou com fome. Descubro que minha cabeça está latejando novamente, deve ser culpa do bruxismo, que é culpa da ansiedade, que é culpa do stress.
Uma batida na porta desperta minha atenção e interrompe minha série de lamúrias que poderiam tomar a manhã toda.
– Hector! Preciso de sua ajuda.
– Só um momento. – Eu repondo sem me mover.
– Não se preocupe. Não tenho pressa. – Responde a voz rouca de Durval.
Sua voz ainda se confunde com os latidos agudos de seus nove cães. Uma matilha que vive aos seus pés. Ontem eram dez deles. São dois vira-latas pretos que não sei os nomes, um Yorkshire chamado Popo, dois Poodles brancos, um casal, chamados de Boni e Clyde, um cachorro de porte médio com pelos longos e dourados, cuja raça não conheço, mas que chama-se Chewbacca, e os outros três restantes também são vira-latas, são malhados e se chamam "Três Mosqueteiros", só não faço idéia de qual é qual, e acredito que nem mesmo Durval e Amanda, sua esposa, saibam distingui-los.
Como disse antes, ontem eram dez deles. Comemos um boxer no jantar. Amanda chorou. Ela é quem dá nome aos cães. "São quase como filhos para ela...", me disse Durval, "...mas ela entende que precisamos deles para sobreviver."
Levanto-me e caminho com calma até a porta. Tento preservar mais alguns segundos ali dentro. Mais alguns poucos segundos de paz. Quando abro a porta, Durval sorri para mim com seus dentes amarelos reluzentes em meio de sua barba negra desgrenhada.
– Estava escrevendo?
– Não. Es... Estava, mas nada importante.
– A minha vai entrar? Digo... Você deve ter tantas para contar...
– Todas vão. – Respondo brevemente tentando cortar o assunto, mas sabendo que suas baterias de perguntas tentem a durar o dia todo.
– Sim, mas... A minha é boa?
– É real. Como as outras.
– Hummm... E como você as organiza? Tem algum padrão ou vai dos...
– Estou seguindo a cronologia dos fatos – Eu minto, sem dar maiores detalhes.
– Ah! Então minha história vai estar espalhada pelo livro todo e não só em uma parte dele. Tipo assim, tudo junto?! – Ele pergunta enquanto os cães continuam latindo.
– Sim. Isso. – Respondo e antes de deixar uma brecha para outra pergunta, eu continuo. – Você disse que queria minha ajuda?
– Ah! É. Isso.
– Então?
– Preciso sair, ver as ninhadas. Pode ir comigo? Não é seguro sozinho e pode ajudar em suas pesquisas.
Então deixo para trás, trancada naquele quarto escuro, minha frustração por não conseguir escrever. Doze andares de escada abaixo, meus pulmões se sentem vivos. Minhas pernas querem se mover mais rápido, meus braços querem lutar. Meus instintos ainda estão fortes. Ainda sinto a ameaça das ruas. Ainda sinto a morte em todos os cantos, me perseguindo, à espreita em cada esquina.
No mais absoluto silêncio, caminhamos pela cidade deserta. O deserto de hoje ainda é quase igual ao deserto dos primeiros dias. É impressionante como o mundo parece parar quando nós paramos de mudá-lo todos os dias.
Duas quadras depois de deixar o edifício nós passamos em frente ao teatro onde ontem tive minha primeira aula de violino. Lá dentro uma série de pessoas ainda faz-de-conta que nada mudou e trocam seu conhecimento por comida.
Eu os entrevistei quando cheguei aqui, na semana passada. Entrevistei um grupo de teatro que está ensaiando para estrear uma peça nova no verão, um malabarista e uma trapezista que faziam parte de um circo antigamente, um colecionador de filmes que ainda consegue reproduzir algumas películas antigas no teatro aos domingos, o violinista e uma dezena de pessoas que passa seus dias ali dentro, acompanhando os ensaios e aplaudindo. Pelo menos assim o mundo ainda tem alguma magia... E aulas de violino. Costumava ver pessoas assim com desprezo, mas agora entendo que seus afazeres são sua única segurança e eles se agarram com todas as forças naquilo que acreditam que podem proteger.
De repente entendo que a pistola que carrego em minha mão nesse momento é o único instrumento que preciso saber usar. Minha vida depende dela. Não sou como eles... Sou um guerreiro.
Minhas mãos não tremem. Meu suor é frio. Meus olhos reparam qualquer movimento. Meus ouvidos estão sempre atentos. Consigo sentir cada músculo dos meus braços ao segurar uma arma. Sinto meus ombros firmes com a postura curvada para a frente e mantenho a mira sempre em frente aos meus olhos. Movimento lentamente minhas pernas, concentrando o peso do corpo nos joelhos flexionados, deixando meus passos leves e silenciosos.
Meu corpo é uma fortaleza vazia.
Atrás de mim, Durval segue cada passo. Posso ouvir seu coração batendo acelerado e imagino como ele faz esse trajeto quando não estou por aqui. Essa não é a primeira vez que me hospedo em sua casa, também não é a primeira vez que como um cachorro, mas é a primeira vez que vejo esse homem em silêncio.
Fico imaginando que ele não me contou alguma coisa. Ele nunca pediu minha ajuda antes. Nunca está nervoso e também nunca calou a boca na rua, nem mesmo quando eu lhe pedia.
Completamos três quadras e ainda nenhuma palavra.
Quatro quadras.
Cinco.
Silêncio.
Além do coração de Durval, posso ouvir o vento uivar, tanto nas ruas como no alto dos prédios. Posso ouvir também os sons dos pássaros e dos ratos. Posso ouvir o "tic tac" do meu relógio de pulso. Posso ouvir nossos passos no asfalto e sons de insetos diversos. Já andamos seis quadras.
Se andar mais nessa situação, vou voltar a ouvir meus pensamentos. Isso seria detestável. Eles são sempre detestáveis nos últimos dias. Quinze dias. Faz duas semanas que não sei para onde ir.
Sete quadras.
Oito.
As calçadas estão quase totalmente destruídas e tomadas pelo mato. A natureza atravessou o concreto em apenas três anos. Algumas construções também estão tomadas por mato em seu piso térreo. De qualquer forma, os sobreviventes vivem apenas nos andares mais altos mesmo, então não faz diferença. Os carros abandonados nas ruas estão cobertos de limo e fungos. Teias de aranhas cobrem algumas vitrines de lojas por completo. Manequins com suas roupas semidecompostas nos observam pálidas. Pelo menos os cadáveres sumiram. Reparando nas ruas ao meu redor, penso em como tudo aquilo foi um dia... Agora não resta quase nada. Talvez não reste nada em breve.
O coração de Durval começa a acelerar.
Posso ouvir claramente.
Mas não preciso pensar muito para entender a cilada.
Estamos cercados.
Passamos a nona quadra descendo reto desde a saída do abrigo até chegar em uma pequena praça com mato tão alto que não se pode ver através dele. Ao lado de um caminho de pedras rústicas construído as pressas para formar um atalho, há uma estátua destruída de um cavaleiro e sua montaria. Ela jaz no chão, sobrando apenas alguns pedaços das patas do cavalo sobre sua base. Ao lado da estátua, circulando toda a praça, surge repentinamente um grupo de homens mal-encarados e maltrapilhos. Com certeza desordeiros e violentos. O coração de Durval dispara de vez. Suas batidas me lembram o trote de um cavalo. E ao lado do cavalo da estátua o homem que parece ser o líder dos demais me encara diretamente.
Poucos segundos depois, Durval não consegue se conter e solta uma gargalhada.
Todos rimos.
Em um mundo onde não existe mais nada, ainda existe amizade. E aquele grupo de marmanjos mal encarados é formado pelos melhores amigos que já encontrei nessa vida.
CAPÍTULO 01
O professor de violino não demorou muito em minha primeira aula. Unhas roídas e dedos curtos, segundo ele, eu conseguiria uma melodia melhor com um martelo. O professor de violino é careca, gordo e corcunda, usa óculos e tem um péssimo hálito, então eu penso que essa é sua maneira de descontar em alguém suas frustrações. Afinal, porque eu quero tanto aprender violino aos 25 anos de idade? Que diferença isso fará na minha vida agora? Não sei. Decidi aprender. Decidi isso numa tarde de sábado, quinze dias atrás.
Dedos curtos e unhas roídas. Ok. Mas minhas mãos também são muito precisas. Isso, meu professor de violino ainda não sabe. Em minha primeira aula, eu não fiz nada. Apenas observei enquanto ele afinava o instrumento e falava de sua habilidade nata que nunca o levou a lugar algum, e nunca mais levará. Eu ouvia passivamente, mas em meu íntimo já crescia a vontade de superá-lo. Dois meses talvez. Dois meses e estarei tocando melhor que ele. Talvez três ou quarto, mas mesmo assim...
Nada disso realmente importa.
Acho que não importa mais.
No final da aula, volto para casa. Não é minha casa. É apenas um quarto com banheiro que serve de abrigo. Afinal, essa não é a minha cidade. Não conheço ninguém aqui, e não gosto de ninguém que eu conheço. É um quarto com banheiro dentro de um apartamento no décimo segundo andar de um edifício residencial. Aqui mora um casal, nove cachorros, três gatos ou mais, dois papagaios e em algum lugar deve haver algum outro bicho que esqueci de citar. Apenas volto para casa para dormir. Subo todos os doze andares pela escada. Penso em minha vida a cada degrau. É uma boa terapia, pelo menos me deixa mais cansado, assim, tenho desculpas para não ser produtivo. Apenas volto para casa para dormir, mas nunca fui muito bom em dormir.
Sentado na minha cama reteso as cordas de meu arco. Empunho o violino e começo a tocar. Nunca ouvi nada mais detestável. Ele agora está afinado, mas só consigo produzir ruídos e o som desagradável do atrito entre as cordas. Talvez seja culpa dos meus dedos curtos e minhas unhas roídas, mas a verdade é que isso nunca me impediu de desenhar, pintar ou escrever, mas nos últimos quinze dias, minhas mãos não conseguem mais produzir beleza. Não conseguem produzir mais nada. Talvez antes, mas não agora...
Nada disso realmente importa.
Não importa mais.
PRÓLOGO
Quando estava tudo perdido eu corri.
No começo eu corri com passos largos e firmes. Corri mais rápido do que já havia corrido em toda minha vida. No começo eu fugia da morte, então corri desesperadamente rápido. Enquanto corria, meus olhos encheram de lágrimas. O suor escorria em minha testa e pingava em grandes gotas, mas eram lágrimas em meus olhos, e não suor.
Eu corria e chorava, então percebi que fugia de mim mesmo. Eu fugia do fracasso. Eu fugia da perda. Eu fugia das memórias daqueles que morreram por mim. Então eu corri mais! Corri até meus pés incharem e pesarem feito chumbo. Corri até meus nervos enroscarem e torcerem. Corri até sentir minha perna dormir.
O ácido tomava minhas veias e me rasgava por dentro, mas aquela dor não chegava em minha alma. A dor da derrota me dominava por completo. Eu tentei correr até o fim do mundo. Senti meu peito ficar pesado, senti espasmos em meu corpo, senti meu coração pular até a boca, mas corri. Corri rangendo os dentes e bufando em agonia. Corri, corri e corri...
Poucas foram as vezes que lembrei dos infectados, que me perseguiam como cães raivosos. Cada vez que tentei olhar para trás, pude ver mais e mais deles. Eram como uma onda de ódio espumando e gritando atrás de mim.
Corri até minhas pernas ficarem bambas, corri até perder os sentido, então, por alguns segundos, achei que tudo havia terminado. Não havia chão, não havia suor, talvez ainda houvesse lágrimas, pois não conseguia mais ver o caminho a minha frente. Por alguns segundos, poucos segundos, pensei estar voando e imaginei que seria a morte. Mas ao bater minha cara no chão e sentir o calor dilacerando minha pele, percebi que morrer não seria tão fácil assim.
Demorei a recobrar meus sentidos e quando me virei para trás, a onda selvagem me alcançara. Minha boca tinha gosto de terra, minha cabeça girava e latejava, onde antes os ferimentos queimavam, agora eu sentia o sangue gelar e escorrer sobre meus olhos que só podiam ver vultos vermelhos por todos os lados.
Por alguns momentos pensei que seria tarde demais, já estava cercado. Minhas armas ficaram jogadas no caminho sem munição, então instintivamente, puxei minha espada e comecei a cortar. Cortei e estoquei para mantê-los afastados, cortei mãos, cabeças, e barrigas, de onde escorriam as entranhas. Tive alguns segundos de loucura, tomado pelo calor da matança. Cortei e gritei, não sentia mais dor alguma, mas continuava chorando. Cortei e estoquei, mas a onda me empurrou para trás e perdi o espaço para brandir minha espada. Foi quando senti a primeira mordida.
Tentei me livrar, mas uma cabeça apertava suas mandíbulas sobre a proteção do meu braço. Os dentes tinham muita força, mas não para atravessar o couro. Minha mão agora estava imóvel, espremida pela massa de corpos que me rodeava. Voltei a sentir minhas pernas, elas queimavam. Voltei a sentir dor. O ferimento em minha cabeça latejou. Senti meus olhos fecharem e tentei abri-los novamente, mas estavam cheios de sangue e eu não podia ver nada.
Continuei me debatendo freneticamente, e assim consegui escapar dos primeiros puxões e agarrões. Meus braços não tinham mais forças para lutar e algumas mãos geladas já apertavam meu pescoço. Foi assim que comecei a ceder.
Relaxei minhas pernas e lembrei do meu fracasso. Parei de me debater e pensei nos homens que levei até a morte. Parei de gritar e chorar e então desejei morrer. Ainda sentia o punho da espada, mas deixei ela escorregar de minha mão. E depois que ouvi o primeiro tiro passar ao lado de minha cabeça, zunindo e arrancando um pedaço de minha orelha, não senti mais nada.
O CAOS
"Nascentes morimur, finisque ab origine pendet."
Ao nascer começamos a morrer, e o fim está pendente desde o nascimento.
Os sinais eram claros e os dias contados, mas niguém queria ver. Os sinais eram claros e os dias contados, mas todos fecharam os olhos. Um dia, o mundo despertou para uma nova realidade. Uma onda de pavor, desespero e morte destruiu a raça humana. Os sinais eram claros e os dias contados, mas quando aconteceu ninguém estava preparado. Nos últimos dias da humanidade, muito pouco se escreveu, mas relatos, diários, fotos, desenhos e alguns documentos formam os últimos registros de uma sociedade morta e o nascimento da resistência. O mundo que conhecemos não existe mais... Aos sobreviventes, o caos!