10 ANOS

FAZ 10 ANOS HOJE. FORAM ANOS DE DOR E DESESPERO. FORAM ANOS EM QUE A HUMANIDADE SOFREU. FORAM ANOS PARA MORRER. FORAM ANOS PARA APRENDER A LUTAR. FORAM 10 ANOS PARA ENTENDER O FIM. FORAM 10 ANOS ATÉ ENTENDER QUE HÁ ESPERANÇA. FORAM ANOS PARA VALORIZAR OS BRAVOS E RESGATAR NOSSA FORÇA COMO ESPÉCIE. AGORA TENTAMOS RECONSTRUIR O POUCO QUE SOBROU, MAS PARA ISSO, NUNCA DEVEMOS ESQUECER NOSSO PASSADO E MUITO MENOS OS DIAS QUE NOS TROUXERAM AO PRESENTE MOMENTO. NÃO PODEMOS ESQUECER NENHUMA BATALHA, NENHUMA CONQUISTA OU DERROTA. NÃO PODEMOS ESQUECER NENHUM HERÓI, SEJA VIVO OU MORTO. NÃO VAMOS BURLAR A HISTÓRIA, NEM DEIXAR DE CONTÁ-LA. VAMOS DESCOBRIR QUE A VIDA CONTINUA E QUE TODOS DEVEMOS FICAR DE PÉ. VAMOS COMEÇAR DENOVO, E AGRADECER ÀQUELES QUE NOS LIBERTARAM PARA ISSO...

Essas são as memórias do fim. As memórias dos mortos. As memórias de um mundo que acabou. As palavras abaixo sobreviveram aos seus narradores, algumas contam a trajetória de Hector, outras, daqueles que cruzaram seu caminho. Ele jurou protegê-las com sua vida e agora elas estão aqui... Para toda a eternidade.

INSTRUÇÕES

O livro começa no post "CAOS", o primeiro post do blog, ou seja, ele deve ser lido dos posts mais antigos para os mais atuais. Os capítulos estão numerados para facilitar a navegação.

CAPÍTULO 04

Não sei dizer quantos segundos levei para recuperar minha consiência, mas assim que entendi o que havia acontecido, também percebi que minha pistola já estava em punhos, acho que esse era meu reflexo mais rápido e mais importante. Consegui ouvir alguns sons distantes, alguns gritos. Mas tudo era tão abafado que os sons passavam pela minha cabeça como rajadas de vento passam por uma fresta. Eu ainda estava deitado no meio do metal retorcido, tentando manter meus olhos abertos e focar alguma coisa quando fui puxado e arrastado para fora da caminhonete por onde antes ficava seu para-brisas.

Me retorci todo tentando levantar sozinho, instintivamente tentei lutar, mas pouco antes de levantar a arma, percebi que era Cotovelo quem estava me puxando, então relaxei um pouco meu corpo e ele me ajudou a levantar. Meu braço estava inteiro vermelho e molhado de sangue, mas ainda não havia sentido nenhuma dor. Eu via os pedaços de vidro enterrados nele e os puxava para fora com naturalidade enquanto andava apoiado nos ombros de Cotovelo. Tive a impressão que o para-brisas todo estava enterrado no meu braço, mas lógico que isso era um exagero, eu estava apenas em choque, e como não era a primeira vez, sabia que aquilo ia doer muito algumas horas depois.

Cotovelo me colocou sobre o capô do Dodge e correu para ajudar Nove-Contos, que apesar de não ser tão parrudo quanto o colega, carregava Francis sozinho. Quando pensei em correr ajudar, Francis despertou e chutou os dois para longe dele. Ele já estava revigorado e, como era de se esperar, extremamente irritado. Francis é exatamente o tipo de pessoa que não gosta de perder, que não sabe perder, e naquele exato momento, ele havia acabado de perder um caminhão, sua caminhonete, um punhado de bons soldados, dois batedores, dezenas de armas e equipamentos além da batalha para qual havia se preparado.

Ele andou até o carro bufando. Sua cabeça estava vermelha e tinha um corte que descia do alto da testa até o fim do nariz. Nas suas mãos, ele carregava a escopeta que estava na caminhonete. Ele primeiro apontou para Nove-Contos e Cotovelo e mandou os dois entrarem no carro imediatamente, depois olhou para mim e pediu de forma mais gentil, ou seja, as mesmas palavras sem me apontar a arma.

Assim que entrei naquele carro, lembrei que poucas horas antes, havia acordado em uma das camas macias do abrigo de Durval, lembrei que estava me sentindo estressado e reclamei de dor nas costas, lembrei que uma simples dor-de-cabeça estava me impedindo de escrever e que estava enjoado e não queria viajar. Assim que Nove-Contos acelerou o potente motor V8 e partiu cantando os pneus deixando para trás o cheiro de borracha queimada e uma nuvem de fumaça que se misturava aos destroços, lembrei que não sabia tocar violino, mas também lembrei nada disso importa mais. Eu sou um guerreiro e estou exatamente onde quero estar.
Nessa manhã voltei a sentir o cheiro de sangue.

Estacionamos o carro em uma pequena clareira, repleta de quiosques e churrasqueiras, alguns kilometros antes na estrada. Algum tempo atrás, famílias inteiras passavam seus finais de semana alí, na beira do rio, pescando e curtindo a natureza, agora somos apenas eu e Francis, aproveitando a água para limpar os ferimentos.

– Os filhos da puta minaram a estrada! Disse Nove-Contos ainda agitado – Só pode ser isso. A porra do caminhão levantou do chão!
– Aqueles merdas tem lança-foguetes? – Perguntou Cotovelo.
– Não! Cara! Levantou do chão! Tinha que ser uma mina!

Enquanto os dois discutiam, percebi que Francis estava me olhando. Até agora eu ainda não havia perguntado sobre nosso destino, e como tudo parecia perdido, essa era a hora! Eu sabia que seu silêncio escondia algo, agora eu sabia que ele precisava de mim. Agora eu sabia que ele não poderia esconder mais nada.

– Sabe Francis... Aconteceu há muito tempo atrás... – Comecei e fiz uma pequena pausa, esperando sua atenção – Eu estava dirigindo por essa avenida larga, uma daquelas cheias de pistas e de alta velocidade, alguns metros na minha frente havia um outro carro. Eu estava na pista da esquerda e ele na do centro. Cem metros na nossa frente, o semáforo ficou amarelo e eu comecei a reduzir, esse outro carro acelerou. A gente estava chegando perto do cruzamento mas ficando cada vez mais distantes um do outro, ele acelerando e eu freando. Eu sabia que fecharia antes dele passar, mas seria rápido como sempre acontece. E fechou, ele furou. Por uma simples brincadeira, bati a mão na manopla do cambio e fiz com a boca um som de explosão, mas nesse exato segundo, ou nessa exata fração de segundo, um carro surgiu da trasversal e os dois colidiram. Um capotou várias vezes, por vários metros antes de parar como uma pilha de metal retorcido, o outros parou alí, esmagado como uma barata no asfalto, compacto como uma lata amassada. Seis pessoas morreram. No carro que estava à minha frente, um casal, e no outro, uma família inteira. Foi simples. Foi gloriso. Assim é a morte. Assim é a vida. Nenhum dos dois freou. Nem por um segundo. Foi rápido demais. Sem aviso, sem despedidas, sem grandes questões. Apenas acontece. Como uma bala na nuca. Você nunca sabe quando e como a morte chega da mesma forma que você nunca sabe quando e como a vida acaba. É só a perspectiva que muda. Se você pensa na morte que vem, você vive com medo. Se você pensa na vida que vai, você vive com liberdade. Uma vida também precisa do fim para ser completa.

Terminei de enfaixar meus braços, acreditando que não restara nenhum pedaço de vidro enterrado nele para me atormentar depois.

– É assim que eu vejo as coisas agora...
– Ninguém deveria morrer hoje. Minha estratégia era intimidar.
– Acho que está na hora de você me contar... Tudo! – Falei encarando seus olhos cinzas e seu rosto vermelho.

Francis se afastou do rio e caminhou em direção ao carro, abriu o porta-malas e começou e abastecer sua mochila. Nove-Contos e Cotovelo ficaram parados observando. Caminhei até ele e pude ver que o porta-malas nada mais era que um grande depósito de armas e munição. Havia de tudo lá dentro.

– Pegue tudo o que você consegue carregar a pé. – Disse Francis – Pegue água também, e o que você precisar para seus curativos. São quatro dias de viagem em frente, Hector, terei tempo para te contar tudo.

Francis mandou Nove-Contos e Cotolevo voltarem para o abrigo, segundo ele, como era planejado, mas ordenou que não deveriam contar a ninguém sobre o ocorrido. Tudo deveria continuar como fora planejado e dentro de quatro dias, eles deveriam partir com os voluntários para a estação. Eu estava apenas começando a entender a situação. Olhando para a água do rio, adivinhei nosso destino e finalmente tudo se encaixou. Vamos matar homens. Não fantasmas, infectados sem alma, mas homens que se apropriaram das estações de tratamento de água e que por algum tempo moraram lá, que reativaram tudo e forneceram para nosso resto de sociedade uma esperança de sobreviver. Vamos caçar e matar esses homens pois eles se tornaram uma ameaça à nossa liberdade. Eu sabia que isso iria acontecer.

Um homem nunca escapa de sua própria guerra. Essa era a minha.

Matar traz uma sensação de poder que não pode ser compreendida. Quando senti isso pela primeira vez ainda era quase macio e fraco como uma criança. Minhas mãos eram lisas e meus dedos finos. Meus braços não tinham quase nenhum músculo e ainda estava acostumado a comida farta e variada, sempre quente e limpa. Apertei meus curativos mais uma vez e empenhei toda minha atenção naquele porta-malas.

Meus braços doem. Mas estou feliz.

O peso da pistola, a força do recuo provocado pelo disparo, o punho de um facão, a sensação de rasgar a carne. Essas coisas penetram pelas minhas mãos, tomam minha corrente sanguínea e explodem no meu coração.

Nove-Contos quase perdeu o controle de tão contrariado, mas preferiu partir bufando e gritando palavras de revolta a desobedecer Francis. Cotovelo apenas observava perdido e suava. O carro sumiu na estrada e eu e Francis ficamos sozinhos.

– Você já sabe para onde estamos indo, certo?! – Ele perguntou sério.
– Sim.
– E sabe que vamos sozinhos?!
– Sim.
– Sabe, esse era meu plano original. Chegar na surdina e matar todos, tomar a estação e colocar meus homens lá, mas algumas pessoas, – Disse ele com scarnio – considerariam isso muita brutalidade. Mas olhe agora... Temos mais de trinta mortos nas costas e ainda vamos partir para a brutalidade. Acho que ninguém faz questão de abrir os olhos e ver o mundo em que estamos vivendo, mesmo depois de tudo.
– Isso não é novidade. E é uma das razões pelas quais prefiro estar sozinho.
– Mentira. Eu sei porque você está sozinho Hector, e sei que você não está fugindo, você também está caçando. Eu sei que você esteva no presídio quinze dias atrás. Eu sei o que você está procurando.

Os últimos quinze dias pareciam outra vida depois das últimas horas, mas eles estavam lá, no fundo da minha cabeça apenas esperando para me atormentar. Francis sabia disso. Ele precisava provar que havia pensado em tudo.

– Eu posso ajudar você, e podemos acabar juntos com isso, mas antes preciso da sua ajuda, aqui e agora. – Disse Francis já sabendo qual seria minha resposta, mas eu nem precisei abrir minha boca, apenas continuei em frente em silêncio.

Ele me acompanhou, mas não em silêncio. Pela primeira vez em tanto tempo, Francis estava disposto a falar. Francis era uma lenda, e lendas nascem a partir de mistérios sem respostas. Francis era um sobrevivente único. Era um herói da própria existência. Muitos deviam suas vidas a ele. Agora lutavam e matavam por ele. Muitos também morreram por ele. Mas fora Mariana, ninguém o conhecia. Até agora, pois foi em suas palavras que encontrei uma das mais lúcidas e detalhadas memórias do fim.

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