10 ANOS

FAZ 10 ANOS HOJE. FORAM ANOS DE DOR E DESESPERO. FORAM ANOS EM QUE A HUMANIDADE SOFREU. FORAM ANOS PARA MORRER. FORAM ANOS PARA APRENDER A LUTAR. FORAM 10 ANOS PARA ENTENDER O FIM. FORAM 10 ANOS ATÉ ENTENDER QUE HÁ ESPERANÇA. FORAM ANOS PARA VALORIZAR OS BRAVOS E RESGATAR NOSSA FORÇA COMO ESPÉCIE. AGORA TENTAMOS RECONSTRUIR O POUCO QUE SOBROU, MAS PARA ISSO, NUNCA DEVEMOS ESQUECER NOSSO PASSADO E MUITO MENOS OS DIAS QUE NOS TROUXERAM AO PRESENTE MOMENTO. NÃO PODEMOS ESQUECER NENHUMA BATALHA, NENHUMA CONQUISTA OU DERROTA. NÃO PODEMOS ESQUECER NENHUM HERÓI, SEJA VIVO OU MORTO. NÃO VAMOS BURLAR A HISTÓRIA, NEM DEIXAR DE CONTÁ-LA. VAMOS DESCOBRIR QUE A VIDA CONTINUA E QUE TODOS DEVEMOS FICAR DE PÉ. VAMOS COMEÇAR DENOVO, E AGRADECER ÀQUELES QUE NOS LIBERTARAM PARA ISSO...

Essas são as memórias do fim. As memórias dos mortos. As memórias de um mundo que acabou. As palavras abaixo sobreviveram aos seus narradores, algumas contam a trajetória de Hector, outras, daqueles que cruzaram seu caminho. Ele jurou protegê-las com sua vida e agora elas estão aqui... Para toda a eternidade.

INSTRUÇÕES

O livro começa no post "CAOS", o primeiro post do blog, ou seja, ele deve ser lido dos posts mais antigos para os mais atuais. Os capítulos estão numerados para facilitar a navegação.

CAPÍTULO 03

Todos riam, mas suas armas continuavam apontadas para mim, assim como o olhar do homem misterioso no centro do bando. Seu nome é Francis e seu olhar encontra diretamente com o meu de uma forma tão profunda que parece atingir minha alma. Seus olhos são claros, quase cinzas, estão semi-cerrados e seus sorriso parece revelar mais crueldade do que alegria. Sim, esse é Francis. Por alguns instantes, penso em fechar meus olhos para evitá-lo, mas antes disso ele fecha seu sorriso e levanta sua arma, calando a todos em sua volta. Ele caminha em minha direção, o silêncio é intransponível. Sua mira está baixa, mas seus olhos mostram que ele não hesitaria a reagir se fosse preciso. Acho que apenas seu olhar gelado já seria letal o bastante em alguns casos, mas eu o conheço o bastante, assim como ele me conhece, e nós nunca somos os mesmos sem armas na mão. Somos dois cães malditos com maldade no peito e falsidade na cara. Mas agora ele é o cão que lidera a matilha e eu sou o vira-latas... Já foi diferente antes. Muito tempo atrás. Alguns passos a mais e Francis para. Pela primeira vez ele quebra o olhar que me paralisava. Ele apenas fita os olhos curiosos de Durval por um breve segundo e esse baixa a cabeça e começa a tremer.

- Suma daqui Durval! - As palavras de Francis soaram como tambores e fizeram a terra tremer, ou ao menos tremeu quando Durval partiu em disparada, correndo aos tropeços apavorado sem olhar para trás - E você, Hector, antes de mais nada, guarde essa arma. Você não precisa dela aqui.
- Isso foi dramático demais até para você. - Disse tentando quebrar o gelo daquele momento.

Francis guardou a sua pistola em um coldre lateral. Guardei a minha mas fiz questão de mostrar que deixei o coldre aberto. Nos olhamos por alguns segundos, então Francis abriu um sorriso e me estendeu a mão para um cumprimento. Estendi a minha em resposta, mas fui puxado para perto dele e golpeado com uma forte cabeçada no nariz. Foi como se a luz do dia tivesse sido roubada. Tudo ficou escuro de repente e a dor correu meu corpo todo. Ele ainda seguarava minha mão e não me deixou cair no chão, então enquanto tentava me equilibrar e continuar de pé, ele se aproximou um pouco mais para sussurrar em meus ouvidos.

- Isso foi pela minha irmã. Lembranças da Mariana. Aceite e acaba aqui. Se reagir vai ser pior. - Assim que ele soltou minha mão, levei-a até meu rosto e pude sentir o sangue quente escorrer do nariz que latejava.
- Ah! É bom te ver... Também. - As palavras sairam abafadas.
- Nunca é bom te ver. Você só tráz problemas!

Francis me deu as costas, então dois de seu capangas me ajudaram a levantar. Não sei seus nomes verdadeiros, na verdade, acho que nem eles se lembram mais. Nomes, como muitas outras coisas, também ficaram para trás. Nove-Contos e Cotovelo, é assim que Francis os chama, e é por esses nomes que eles repondem agora. Levei minha mão ao nariz novamente. O sangue continuava escorrendo. Agora escoltado por Nove-Contos e Cotovelo, eu tentava andar apressando o passo para me aproximar de Francis. Permanecia com a cabeça erguida e tentava respirar, minha mão já estava toda suja de sangue e meus olhos lacrimejavam. A dor passou. A dor passa cada vez mais rápido.

- Francis! - Chamei ainda com minha voz abafada. - Mas que diabos deu em você?!

Seus olhos cinzas olharam para mim novamente. Percebi que ele reparou em meu nariz sangrando e em minha mão suja. Percebi que ele tentou me olhar nos olhos, mas eles estavam ardendo o suficiente para ficarem mais fechados do que abertos. Silêncio. No último ano aprendi que o silêncio existe. Em nenhum momento de toda minha vida antes do fim havia experimentado um silêncio verdadeiro, agora ele é comum, é confortável. Mas não esse silêncio. O silêncio de Francis é um silêncio diferente. É o tipo de silêncio que apenas será quebrado quando houver forças suficientes e as palavras certas para uma notícia ruim. É algo desconcertante. Nesses breves momentos de silêncio, pensei em Mariana, sua irmã, e acreditei que ela estava morta. Minha cabeça girou por alguns segundos enquanto imaginava como isso teria acontecido. Lembrei de muitos bons momentos que passamos juntos e também de seus sorrisos. Então lembrei do dia em que a abandonei... Conseguia sentir a dor de Francis e sua raiva por mim. Pensei que a culpa poderia ser minha e senti remorso. Senti meu nariz latejar e então achei que merecia sofrer, mas tudo isso passou pela minha cabeça em um breve momento de silêncio, esse momento acabou e as palavras de Francis nos levaram para longe dalí. Mais uma estrada, mais uma guerra, eu imaginava o que estava por vir.

Do outro lado da praça um comboio completo nos aguardava, não tive muita chance de argumentar enquanto Nove-Contos e Cotovelo me empurravam para dentro da caminhonete de Francis. Ainda com meus olhos ardendo pude ver seus homens embarcando, todos fortemente armados, em um caminhão de carga logo na nossa frente. Dois motoqueiros partiram primeiro, eles vão e voltam pela estrada procurando armadilhas que possam ameaçar o comboio, são batedores. Ao lado da caminhonete, Nove-Contos e Cotovelo aguardavam em um Dodge Dart preto com um motor V8 que roncava alto e fazia minha cabeça latejar. Francis andou de um lado para o outro distribuindo ordens antes de entrar na caminhonete, e quando o fez, me entregou um rifle e uma escopeta junto com uma sacola de munição. Nosso histórico era conturbado, mas sentia que podia confiar nele, e acho que ele sabia que podia confiar em mim, ao menos podia confiar em minha mira.

As palavras de Francis nesse dia eram tão amargas que sua feição retorcia a cada uma delas. Ele esperou para falar comigo quando ficamos sozinhos. Eu ainda pensava em Mariana, preocupado, mas ele me garantiu que ela estava bem e cortou o assunto rapidamente. Aceitei sua resposta e agradeci por ela. A última coisa que queria naquela hora era remoer meu passado. Não sabia qual seria o nosso destino naquela tarde, ainda não sabia, mas imaginava. Estavamos sozinhos na caminhonete de Francis, seguidos de perto por seus homens, seus melhores soldados. Entre esses, brutamontes como Cotovelo e safados como Nove-Contos. Não era algo que poderia ser chamado de boa companhia, mas talvez fosse a única companhia segura, pois todos aqueles arruaceiros maltrapilhos e fedorentos eram sobreviventes como nós, mas não eram líderes e por isso precisavam de Francis e seguiam cada uma de suas ordens como se ele em pessoa fosse a única lei que restara.

- Alguma vez você se sentiu livre antes?! - Me perguntou Francis após alguns kilometros de estrada.
- Antes? - Devolvi a pergunta, mas sabia bem o que ele queria dizer - Nunca. - Essa foi minha resposta na ocasião, e ainda hoje ela seria a mesma.

Eu olhava para a estrada vazia, olhava para o horizonte distante brilhando onde o ar começava a dançar, distorcido pelo calor, sentia que não haviam limites. Sentia o vento na minha cara e em meus cabelos e tinha vontade de sorrir. Sabia que minha vida era responsabilidade minha, mas estar vivo era um mérito, um motivo de orgulho. Sim. Eu sentia a verdadeira liberdade naquele dia, mas as idéias de Francis, e sua pergunta buscavam algo mais em minha resposta.

- Antes do fim... Antes de tudo não havia essa liberdade. - Ele continuou - Somos todos livres agora, menos aqueles que se entregam ao medo.
- Eu tenho medo Francis, mas é enfrentar meus medos que me mantém vivo.
- Não Hector. Não é desse medo que estou falando. Se você está aqui hoje, vivo, você precisou lutar por sua vida, ninguém que está aqui poderia ter sobrevivido sem matar alguém. Alguns de nós matamos nossas próprias famílias. Eu matei metade da minha família para me salvar. Matei meus pais para salvar a Mariana.
- Você vai me contar sua história? - Perguntei surpreso depois de um breve silêncio - Talvez essa não seja a melhor hora.
- Esse seu livro, Hector, talvez seja o último livro da humanidade...
- Talvez.
- Então não estrague.

Francis voltou a perder seu olhar na estrada e o silêncio se fechou sobre nós por um longo tempo. Ele nunca havia mencionado meu livro antes e, sinceramente, ele era a última pessoa que eu imaginava se importar. Qualquer palavra sua que demonstrasse algum interesse deveria ser considerada um elogio absoluto. Sem saber para onde aquela estrada nos levava, não sabia quanto faltava para chegar, mas se Francis desejasse mesmo me contar sua história, tenho certeza que nenhuma estrada seria longa o suficiente. Ele era uma homem bruto e fechado, mas era uma lenda viva. Sabia algumas coisas de sua história, mas não os detalhes e sempre são os detalhes que fazem toda a diferença. Pensei em levar a conversa adiante, tomado pela minha curiosidade, mas não me sentia capaz de escrever uma história grande como a dele. Decidi me calar, e melhor, decidi calar meus pensamentos.

Após passar por algumas longas planícies, a estrada começou a subir em uma serra sinuosa. Meus ouvidos ficaram entupidos com a mudança de pressão. A viagem ficou mais difícil e desconfortável. Não era possível saber o que nos esperava atrás de cada curva e como a caminhonete de Francis liderava o comboio, nossas vidas estavam na linha de frente.

– Onde se meteram esses malditos batedores? - Disse Francis resmungando - Puta merda! Bastardos, vira-latas de merda!
– Acho que você deveria parar. Podemos seguir a pé por algum tempo. limpar a estrada até o fim das curvas. Somos um alvo fácil assim.
– A pé?! Nunca. Não vou arriscar perder meus homens no meio desse ferro-velho, cemitério, ou seja lá o que for, que algum dia foi uma estrada.

Os carros destruídos e enferrujados margeavam quase toda a extenção da estrada. Alguns deles estavam carbonizados mas muitos dos corpos já haviam sumido. Quando tudo começou, as pessoas partiram para as estradas, acreditando que a ameaça era somente local. Essas engarrafaram e viraram armadilhas para milhôes que tentavam fugir da contaminação. Além disso, o exército também fez sua parte quando uma força-tarefa foi designada para fechar as vias de acesso para saída ou entrada das grandes cidades, a idéia era boa, isolar os focos de contaminação e combatê-los separadamente, mas na prática, soldados assustados chacinaram famílias inteiras apavoradas e tudo virou uma grande bagunça, no meio dos gritos e da correria, as balas dos militares foram escassas e em poucos dias toda a força-tarefa estava morta ou infectada. Francis tinha razão, de certa forma. Apenas por estar naquela estrada, já estávamos correndo riscos, mas pelo menos enquanto os homens estivessem dentro do caminhão, não teríamos pânico e nem balas-perdidas. A verdade é que o medo é um aliado do fim. Homens com arma na mão e medo na alma sempre fazem merda.

– Quantos kilometros os batedores cobrem em frente? – Eu perguntei enquanto imaginava qual a desgraça que nos aguardava.
– Cinco. Talvez seis... Já deveriam ter voltado faz tempo. São moleques. Que merda, apenas os moleques aceitam ser batedores. Sabe como é... Tem que pegar os malucos.

Durante todo o caminho os batedores iam e vinham. Chegavam com suas motocicletas, sinalizavam duas vezes com o farol e depois viravam as costas para se perder na estrada enquanto comboio seguia em frente. Isso acontecia a cada dez ou quinze minutos, mas agora meia-hora já estava passando. É fato que diminuimos a velocidade na subida, mas mesmo assim, a distância que percorremos já era suficiente para encontrá-los, não importa o que pudesse ter acontecido.
Francis reduziu ainda mais a velocidade e acenou para o motorista do caminhão, esse acelerou até emparelhar conosco. Atrás de nós, no centro da pista, seguia o carro preto com Nove-Contos e Cotovelo, pelo espelho retrovisor eu podia ver suas carrancas malvadas.

– Eles não voltaram. Tem alguma coisa em frente. – Francis gritou, para sua voz ser ouvida pelo motorista do caminhão.

Reduzimos ainda mais a velocidade e o caminhão entrou na nossa frente com seu motor roncando forte. Ele estava acelerando tudo o que podia. Não entendi muito bem e acho que resmunguei alguma coisa, pois Francis começou a narrar para mim o que estava acontecendo.

– Seja o que for que esteja lá na frente, vai virar sucata... Esse caminhão passa por cima de qualquer coisa. Eles vão ver, vão ver só... Não deveriam se meter comigo.

Enquanto Francis falava, eu apenas reparava nos seus soldados na traseira do caminhão. Eles tentavam se segurar em alguma coisa enquanto eram jogados de um lado para o outro em cada uma das curvas fechadas da estrada. Enquanto acelerava, o caminhão esbarrava em sucatas abandonadas na estrada e os homens despencavam dentro dele com cada impacto. Coitados. Imaginei o que aconteceria com eles caso houvesse uma barreira a frente, caso o caminhão estivesse mesmo em rota de colisão. Seria uma desgraça. Mas minha imaginação não é tão fértil assim, pois a realidade sempre pode ser pior.

Foi tudo muito rápido. Senti primeiro o frio na barriga e perdi a respiração. Depois tudo tremeu. O pouco tempo em que meus olhos ficaram abertos apenas me deixou ver o caminhão levantar ao ar como uma pluma e então a bola de fogo o consumiu por completo enquanto os pedaços de corpos e ferragens voavam em nossa direção como meteoros em chamas. O som foi ensurdecedor, depois senti a onda de calor e nossa caminhonete também levantou do chão e capotou.

Eu tinha certeza que estavam todos mortos...

Um comentário:

Anônimo disse...

Muito bom o 3° capitulo!

Soh q demorou tanto pra sair q eu tive q ler novamente o 2° pra ver como tinha acabado o.o

Porem vlw a pena, capitulo muito bem feito e criativo, com uma linguagem ótima!

Continue assim ... q venha o 4°

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