10 ANOS

FAZ 10 ANOS HOJE. FORAM ANOS DE DOR E DESESPERO. FORAM ANOS EM QUE A HUMANIDADE SOFREU. FORAM ANOS PARA MORRER. FORAM ANOS PARA APRENDER A LUTAR. FORAM 10 ANOS PARA ENTENDER O FIM. FORAM 10 ANOS ATÉ ENTENDER QUE HÁ ESPERANÇA. FORAM ANOS PARA VALORIZAR OS BRAVOS E RESGATAR NOSSA FORÇA COMO ESPÉCIE. AGORA TENTAMOS RECONSTRUIR O POUCO QUE SOBROU, MAS PARA ISSO, NUNCA DEVEMOS ESQUECER NOSSO PASSADO E MUITO MENOS OS DIAS QUE NOS TROUXERAM AO PRESENTE MOMENTO. NÃO PODEMOS ESQUECER NENHUMA BATALHA, NENHUMA CONQUISTA OU DERROTA. NÃO PODEMOS ESQUECER NENHUM HERÓI, SEJA VIVO OU MORTO. NÃO VAMOS BURLAR A HISTÓRIA, NEM DEIXAR DE CONTÁ-LA. VAMOS DESCOBRIR QUE A VIDA CONTINUA E QUE TODOS DEVEMOS FICAR DE PÉ. VAMOS COMEÇAR DENOVO, E AGRADECER ÀQUELES QUE NOS LIBERTARAM PARA ISSO...

Essas são as memórias do fim. As memórias dos mortos. As memórias de um mundo que acabou. As palavras abaixo sobreviveram aos seus narradores, algumas contam a trajetória de Hector, outras, daqueles que cruzaram seu caminho. Ele jurou protegê-las com sua vida e agora elas estão aqui... Para toda a eternidade.

INSTRUÇÕES

O livro começa no post "CAOS", o primeiro post do blog, ou seja, ele deve ser lido dos posts mais antigos para os mais atuais. Os capítulos estão numerados para facilitar a navegação.

CAPÍTULO 02

Reviro minhas anotações logo pela manhã...
Onde estou?
Não sei mais dizer.

As cidades agora parecem todas as mesmas e sinto que minhas viagens já perderam o sentido.
Nessa manhã preciso viajar para o leste, mas acordei enjoado e não quero pegar a estrada, então resolvo me dedicar a organizar o material dos últimos dias. Na verdade, precisaria organizar o material do mês todo. Faz tanto tempo agora. As vezes me surpreendo. Quase um mês... Segundo meu diário de bordo, hoje faz exatamente vinte e três, não, vinte e quatro dias que estou fora de casa. Ou melhor, faz esse tempo que comecei minha jornada, pois, casa eu não tinha.

Carrego comigo um diário, cujo qual utilizo para me organizar, dois cadernos que utilizo para escrever as histórias que me contam, fazer anotações importantes, desenhar e coisas assim, uma pasta repleta de fotos, mapas, listas e dezenas de outras coisas que as pessoas me confiam, um gravador, que utilizo quando tenho baterias e mais uma mala com tudo que possa me ajudar a preservar as memórias de algo que acabou.

O céu está nublado e o sol não aparece. Mesmo com o passar das horas, a luz lá fora continua fraca e a janela do quarto não é suficiente para clareá-lo. A camada de poeira que cobre os vidros deixa minha mão preta quando tento limpá-los. Com o dedo indicador da mão direita desenho três letras no vidro sujo. Três letras que formam a única palavra que não sai da minha cabeça: "FIM".

Precisaria de velas para poder escrever, mas não posso me dar ao luxo de usá-las agora, então posiciono meu diário logo abaixo da janela onde existe uma claridade considerável.
Quando está tudo pronto, não consigo escrever. Faz quinze dias que não escrevo nada. As palavras passam pela minha cabeça, frases inteiras são formadas em um piscar de olhos e perdidas em outro. Vejo claramente todos os fatos. Vejo tudo em minha mente. Tantas pessoas, tantas vidas cruzaram meu caminho. Não sei por onde começar e não me sinto capaz de completar essa tarefa.

Um dia nublado em um quarto escuro. Estou perdido.
Acho que nunca me senti assim antes.

Quando tudo começou, passado o pânico, ainda havia uma esperança de que aquilo seria superado. Eu sentia uma coragem e uma brutalidade queimando em meu peito. Eu queria lutar. Queria salvar o mundo todo com minhas mãos e acreditava que isso era possível. Isso aconteceu a pouco mais de um ano. Apenas um ano... Mas quando olho para trás, vejo uma eternidade de dor e morte.

Isso é parte da história que quero contar. A história que preciso contar.
Eu vi o mundo mudar. Vi tudo acontecer. Sobrevivi.

Enfrentei todos os meus medos, meus fantasmas e meus demônios, mas agora não consigo completar a tarefa mais simples que me foi confiada. Não consigo.

Quanto tento me concentrar, sinto dor em minhas costas. Penso no peso que tenho que carregar todos os dias. Penso nos doze lances de escada que preciso subir até chegar nesse abrigo. Penso na minha posição desconfortável sentado na cama me esticando para alcançar a luz da janela. Penso em tudo o que desvia minha atenção. Então descubro que estou com frio. Descubro que estou com fome. Descubro que minha cabeça está latejando novamente, deve ser culpa do bruxismo, que é culpa da ansiedade, que é culpa do stress.

Uma batida na porta desperta minha atenção e interrompe minha série de lamúrias que poderiam tomar a manhã toda.

– Hector! Preciso de sua ajuda.
– Só um momento. – Eu repondo sem me mover.
– Não se preocupe. Não tenho pressa. – Responde a voz rouca de Durval.

Sua voz ainda se confunde com os latidos agudos de seus nove cães. Uma matilha que vive aos seus pés. Ontem eram dez deles. São dois vira-latas pretos que não sei os nomes, um Yorkshire chamado Popo, dois Poodles brancos, um casal, chamados de Boni e Clyde, um cachorro de porte médio com pelos longos e dourados, cuja raça não conheço, mas que chama-se Chewbacca, e os outros três restantes também são vira-latas, são malhados e se chamam "Três Mosqueteiros", só não faço idéia de qual é qual, e acredito que nem mesmo Durval e Amanda, sua esposa, saibam distingui-los.

Como disse antes, ontem eram dez deles. Comemos um boxer no jantar. Amanda chorou. Ela é quem dá nome aos cães. "São quase como filhos para ela...", me disse Durval, "...mas ela entende que precisamos deles para sobreviver."

Levanto-me e caminho com calma até a porta. Tento preservar mais alguns segundos ali dentro. Mais alguns poucos segundos de paz. Quando abro a porta, Durval sorri para mim com seus dentes amarelos reluzentes em meio de sua barba negra desgrenhada.

– Estava escrevendo?
– Não. Es... Estava, mas nada importante.
– A minha vai entrar? Digo... Você deve ter tantas para contar...
– Todas vão. – Respondo brevemente tentando cortar o assunto, mas sabendo que suas baterias de perguntas tentem a durar o dia todo.
– Sim, mas... A minha é boa?
– É real. Como as outras.
– Hummm... E como você as organiza? Tem algum padrão ou vai dos...
– Estou seguindo a cronologia dos fatos – Eu minto, sem dar maiores detalhes.
– Ah! Então minha história vai estar espalhada pelo livro todo e não só em uma parte dele. Tipo assim, tudo junto?! – Ele pergunta enquanto os cães continuam latindo.
– Sim. Isso. – Respondo e antes de deixar uma brecha para outra pergunta, eu continuo. – Você disse que queria minha ajuda?
– Ah! É. Isso.
– Então?
– Preciso sair, ver as ninhadas. Pode ir comigo? Não é seguro sozinho e pode ajudar em suas pesquisas.

Então deixo para trás, trancada naquele quarto escuro, minha frustração por não conseguir escrever. Doze andares de escada abaixo, meus pulmões se sentem vivos. Minhas pernas querem se mover mais rápido, meus braços querem lutar. Meus instintos ainda estão fortes. Ainda sinto a ameaça das ruas. Ainda sinto a morte em todos os cantos, me perseguindo, à espreita em cada esquina.

No mais absoluto silêncio, caminhamos pela cidade deserta. O deserto de hoje ainda é quase igual ao deserto dos primeiros dias. É impressionante como o mundo parece parar quando nós paramos de mudá-lo todos os dias.

Duas quadras depois de deixar o edifício nós passamos em frente ao teatro onde ontem tive minha primeira aula de violino. Lá dentro uma série de pessoas ainda faz-de-conta que nada mudou e trocam seu conhecimento por comida.

Eu os entrevistei quando cheguei aqui, na semana passada. Entrevistei um grupo de teatro que está ensaiando para estrear uma peça nova no verão, um malabarista e uma trapezista que faziam parte de um circo antigamente, um colecionador de filmes que ainda consegue reproduzir algumas películas antigas no teatro aos domingos, o violinista e uma dezena de pessoas que passa seus dias ali dentro, acompanhando os ensaios e aplaudindo. Pelo menos assim o mundo ainda tem alguma magia... E aulas de violino. Costumava ver pessoas assim com desprezo, mas agora entendo que seus afazeres são sua única segurança e eles se agarram com todas as forças naquilo que acreditam que podem proteger.

De repente entendo que a pistola que carrego em minha mão nesse momento é o único instrumento que preciso saber usar. Minha vida depende dela. Não sou como eles... Sou um guerreiro.

Minhas mãos não tremem. Meu suor é frio. Meus olhos reparam qualquer movimento. Meus ouvidos estão sempre atentos. Consigo sentir cada músculo dos meus braços ao segurar uma arma. Sinto meus ombros firmes com a postura curvada para a frente e mantenho a mira sempre em frente aos meus olhos. Movimento lentamente minhas pernas, concentrando o peso do corpo nos joelhos flexionados, deixando meus passos leves e silenciosos.
Meu corpo é uma fortaleza vazia.

Atrás de mim, Durval segue cada passo. Posso ouvir seu coração batendo acelerado e imagino como ele faz esse trajeto quando não estou por aqui. Essa não é a primeira vez que me hospedo em sua casa, também não é a primeira vez que como um cachorro, mas é a primeira vez que vejo esse homem em silêncio.

Fico imaginando que ele não me contou alguma coisa. Ele nunca pediu minha ajuda antes. Nunca está nervoso e também nunca calou a boca na rua, nem mesmo quando eu lhe pedia.
Completamos três quadras e ainda nenhuma palavra.
Quatro quadras.

Cinco.

Silêncio.

Além do coração de Durval, posso ouvir o vento uivar, tanto nas ruas como no alto dos prédios. Posso ouvir também os sons dos pássaros e dos ratos. Posso ouvir o "tic tac" do meu relógio de pulso. Posso ouvir nossos passos no asfalto e sons de insetos diversos. Já andamos seis quadras.
Se andar mais nessa situação, vou voltar a ouvir meus pensamentos. Isso seria detestável. Eles são sempre detestáveis nos últimos dias. Quinze dias. Faz duas semanas que não sei para onde ir.

Sete quadras.

Oito.

As calçadas estão quase totalmente destruídas e tomadas pelo mato. A natureza atravessou o concreto em apenas três anos. Algumas construções também estão tomadas por mato em seu piso térreo. De qualquer forma, os sobreviventes vivem apenas nos andares mais altos mesmo, então não faz diferença. Os carros abandonados nas ruas estão cobertos de limo e fungos. Teias de aranhas cobrem algumas vitrines de lojas por completo. Manequins com suas roupas semidecompostas nos observam pálidas. Pelo menos os cadáveres sumiram. Reparando nas ruas ao meu redor, penso em como tudo aquilo foi um dia... Agora não resta quase nada. Talvez não reste nada em breve.

O coração de Durval começa a acelerar.

Posso ouvir claramente.

Mas não preciso pensar muito para entender a cilada.

Estamos cercados.

Passamos a nona quadra descendo reto desde a saída do abrigo até chegar em uma pequena praça com mato tão alto que não se pode ver através dele. Ao lado de um caminho de pedras rústicas construído as pressas para formar um atalho, há uma estátua destruída de um cavaleiro e sua montaria. Ela jaz no chão, sobrando apenas alguns pedaços das patas do cavalo sobre sua base. Ao lado da estátua, circulando toda a praça, surge repentinamente um grupo de homens mal-encarados e maltrapilhos. Com certeza desordeiros e violentos. O coração de Durval dispara de vez. Suas batidas me lembram o trote de um cavalo. E ao lado do cavalo da estátua o homem que parece ser o líder dos demais me encara diretamente.

Poucos segundos depois, Durval não consegue se conter e solta uma gargalhada.

Todos rimos.

Em um mundo onde não existe mais nada, ainda existe amizade. E aquele grupo de marmanjos mal encarados é formado pelos melhores amigos que já encontrei nessa vida.

3 comentários:

José disse...

Fala Homero. João da Red-Atores, li o blog maneiro. Vou add você no meu lá. Um abraço e continue escrevendo. Atualizo o meu nas seg e sextas, quando dá.

Anônimo disse...

Vamos que vamos, Historias, e filmes, e muito mais...
o Universo é somente o ínicio , va sempre até onde ninguem foi.

Aguardando o Proximo Capitulo

Anônimo disse...

Muito bom cara... realmente vc conseguiu terminar o 2° capitulo deixando para nós leitores aquela vontade de "quero mais" ;D

Que venha o 3° capitúlo...

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