As palavras de Francis lembravam as minhas que tantas vezes tentei escrever. Ele andava ao meu lado pela mata fechada que margeava a estrada, fora em alguns pouco momentos de silêncio nos quais ficavamos atentos a qualquer movimento estranho, ele narrava sua visão do fim. Eu desejei por muitas vezes poder anotar ou gravar tudo, mas ele me obrigou a confiar em minha memória, e confiei. Depois descobri que aquelas palavras nunca mais sairiam da minha cabeça.
Quando começou, todos puderam acompanhar de suas casas. O fim estava na TV, na internet, no rádio. Cada centímetro do planeta era coberto pela mídia. A humanidade estava apavorada, mas ainda nem sabia ao certo porquê.
Uma contaminação em escala global, toques de recolher em quase todas as cidades do planeta, barreiras entre estados, polícia e exército nas ruas, saques, brigas e fanatismo religioso. Tudo estava "no ar". E por um tempo não foi real. A realidade estava para fora da porta da casa da maior parte da população. Era mais um programa de TV.
Naquele momento, os sinais ainda não eram claros, poucos foram os homens que perceberam a ameaça. Grande parte das pessoas discutiu as notícias como um grande "quebra-cabeças" e não percebeu quando o fim bateu a sua porta.
Durante alguns meses antes da contaminação global, o mundo testemunhou fatos isolados que indicavam o que estava por vir. Aconteceu primeiro na África. Redes de notícias internacionais, fundamentadas em boatos que corriam soltos pela internet, descobriram pelo menos uma centena de cidades e povoados fantasmas. As casas ainda estavam lá, algumas ainda estavam limpas, as panelas no fogão com o gás já extinto, torneiras abertas, telefones fora do gancho e carros abandonados no meio da rua. Apenas algumas poucas delas, e as últimas a serem descobertas, apresentavam sinais de lutas e destruição. Sangue não foi encontrado.
A curiosidade humana ainda não havia sido totalmente conquistada pelo mistério africano, até que toda uma equipe de jornalistas ingleses, da BBC, desapareceu. O mundo não se importava com cidades inteiras da África, mas a busca pelos repórteres acabou por acender a chama da curiosidade.
Redes de notícias do mundo todo mandaram seus representantes para lá. A internet foi tomada por teorias da conspiração, discussões inflamadas sobre abduções coletivas e o fim dos tempos. Algumas facções religiosas apontavam o fato como punição divina, outras apontavam como um milagre. A seleção de Deus para povoar o paraíso, e assim, milhares de pessoas do mundo inteiro migraram para a África na esperança de serem escolhidas também. As cidades fantasmas africanas despertaram tanta atenção, que as pessoas não foram capazes de perceber que o mal se espalhara.
O aumento da violência nas grandes cidades não chamava atenção suficiente da mídia, poucos relatos foram registrados, mas alguns deles se tornaram, de forma assustadora, um mapa da contaminação.
Poucas pessoas leram sobre uma senhora idosa que foi presa por matar o filho, a nora e os três netos, de 12, 8 e 6 anos respectivamente. Segundo ela, para os registros oficiais, eles haviam sido possuídos pelo demônio. Primeiro teria sido sua nora, ela a viu atacar o marido. No começo imaginou ser apenas uma depravação sexual, mas então percebeu que havia sangue por todo o lado e que seu filho havia sido mordido até quase a morte, quando tentou fugir, acabou sendo encurralada em seu quarto, seus netos a perseguiam com ódio nos olhos e sangue na boca, "eram cães raivosos" declarou a matriarca assassina que empunhou o revolver calibre 38 do falecido marido para exterminar a família. "Nunca aprovei o casamento.", disse ela para encerrar a declaração.
Esse não foi um caso isolado, na época era comum encontrar matérias sobre assassinos em série, pessoas desaparecidas, conflitos armados entre vizinhos, crimes passionais (louco de ciúmes, dizia uma das manchetes) e histórias mais bizarras como a do açougueiro canibal. Um pai de família de 42 anos mata sete clientes com mordidas, alguns tiveram os olhos, o nariz ou até mesmo os lábios arrancados. Uma matéria publicada no dia seguinte revelava que o filho do açougueiro estava desaparecido e que assim como o seu próprio, os corpos das vítimas sumiram do necrotério.
Naquele mês, os pássaros migraram para o sul. Era inverno. Os pássaros migraram rumo ao frio. Eventos curiosos como esse também foram noticiados. Um jornal argentino publicou uma extensa matéria sobre uma infestação de gatos e ratos na Patagônia. Curiosamente, dois dias depois de uma massiva invasão de ratos na região, os gatos começaram a chegar. Por algum tempo, as pessoas agradeciam aos gatos que exterminaram a maior parte dos ratos, mas eles continuaram chegando. Alguns moradores que tentaram alimentar os animais tiveram suas casas invadidas por dezenas de bichanos. As ruas estavam infestadas e eles atacavam tudo o que era vivo para comer. Seres-humanos viraram comida de gato. Então tudo ficou sério demais. Os gatos foram caçados e aniquilados por uma força tarefa do exercito.
Mas mesmo assim, as pessoas continuavam em suas casas, presas pelo toque de recolher, acompanhando por seus televisores o mundo que ruía a sua volta. A verdade estava nas ruas. A verdade estava na frente de qualquer um. Mas muitos ainda agradeciam à crise os dias de folga do trabalho. Agradeciam e voltavam para frente da TV, onde o colapso do planeta era a atração principal. E foi assim que muitos morreram. Quando o sistema de TV saiu do ar, as pessoas estavam com sua noção de realidade abalada. Não haviam percebido que a contaminação fugira ao controle, e muito menos sabiam do que se tratava a "contaminação", pois em nenhum momento, a mídia que apenas transmitia o caos que se espalhava pelas ruas, conseguiu chegar perto o bastante para entender aquela ameaça.
Foram dezoito dias desde as primeiras cidades decretarem estado de calamidade pública. Dezoito dias até a humanidade ruir. Tomando-se por base o mistério das cidades-fantasmas africanas e os registros relatados acima, esse período abrange cerca de quatro a seis meses. Durante todo esse tempo, nada foi feito. Nenhuma atitude preventiva, de combate ou medida evasiva foi tomada. Após o toque de recolher, a maioria dos países passou a ser controlado pelas forças armadas e a população pode ver a nação morrer pela tela da TV.
Um ano atrás.
Um ano lutando.
Um ano tentando entender.
Milhares de livros contam a história da humanidade, desde sua origem até seus grandes impérios. Milhares de páginas escritas para a eternidade, com conquistas dos homens através dos tempos. Milhares de anos evoluindo, criando ferramentas e tecnologia. Milhares de anos moldando o mundo para a total soberania da raça humana.
Para inúmeros habitantes do planeta, sejam de qualquer raça, credo, região ou classe, imaginar o fim era algo impossível. A humanidade era segura de seu domínio sobre a Terra, mas mesmo assim, calculava que seu fim estava próximo.
A autodestruição era única ameaça, mas ninguém imaginava o fim como ele ocorreu. As teorias sobre o fim do mundo revelavam alarmantes efeitos do aquecimento global, apresentavam o efeito estufa, a emissão de poluentes e o desmatamento como causas de desequilíbrios na natureza e contavam os dias para uma suposta tragédia climática, caso a ocupação nociva da raça humana sobre o planeta não fosse drasticamente abrandada.
Pois ela foi...
Somos poucos agora.
O planeta está vivo. Está se recuperando.
Mas nós estamos morrendo, bem como nossa história.
Pela primeira vez não pudemos fugir, não pudemos ficar indiferentes. Mesmo nas primeiras horas a contaminação já era global. E em poucos dias estava dentro de nossas casas. Não havia cura ou salvação. Não havia dúvida ou esperança. Era o fim da humanidade. O Apocalipse estava "ao vivo" em todos os canais.
Assim como Francis, ainda hoje tenho pesadelos, e todos envolvem os primeiros dias do terror. Ainda vejo os rostos machucados, inchados e marcados de ódio. Ainda acordo ofegante no meio da noite e acredito que tudo está perdido. Ainda hoje consigo chorar quando lembro das pessoas que nunca mais verei... E ainda hoje lembro da expressão de raiva dos primeiros que matei.
Acho que nunca poderia relatar a realidade desses dias com a frieza de Francis. As coisas não são mais as mesmas em minha cabeça. Os sons são os mesmos. Tudo começou com gritos distantes e foi crescendo. Lembro de ouvir freadas no asfalto e um pouco de discussão, depois mais gritos, muitos gritos. Poucas horas se passaram até as ruas serem tomadas pelos sons de tiros, brigas e pelos gemidos agudos dos infectados. As imagens, porém, não são mais tão claras. Minha mente transformou as memórias e os rostos retorcidos em faces da morte. Vejo os olhos profundos dos fantasmas, quase órbitas negras. Vejo os dentes arqueados para fora e o desespero, aquilo que depois começamos a chamar de fome.
Francis falava claro. Ele lembrava de tudo.
Os três primeiros dias foram de caos e terror. As pessoas que ainda se negavam a acreditar na epidemia acabavam contaminadas e abriam as portas de sua casa para a morte. As ruas estavam tomadas por enfermos, policiais, militares e alguns poucos homens que se juntavam para tentar proteger as famílias, mas o número de infectados crescia a cada hora e não podia ser enfrentado.
Entre o quarto e o oitavo dia, uma verdadeira guerra se espalhou pela cidade, as pessoas que haviam respondido ao toque de recolher, começaram a se sentir entediadas em suas casas e decidiram lutar. Havia uma esperança sólida na alma de todos que dizia que o pior já havia passado, mas o número de infectados quase triplicou depois dessa atitude, acabando por aniquilar qualquer capacidade de reação militar.
Do oitavo ao décimo dia, uma trégua era percebida. Não havia mais tiros, gritos, lutas e mortes nas ruas. Quem estava em casa podia jurar que a paz voltara a reinar. Mas a verdade é que não havia lutas, pois os infectados apenas perseguiam as pessoas saudáveis, e naqueles dias, estavam todos escondidos em suas casas.
Na noite do nono dia, a TV saiu do ar. Sem saber o verdadeiro status da contaminação e perdendo sua única janela com o mundo, as pessoas voltaram-se para as janelas da vida real. Naquele momento, as cidades-fantasmas africanas voltaram a ser a pauta de todas as discussões. Como aquelas cidades inteiras sumiram do dia para a noite, agora as pessoas olhavam de suas janelas e acreditavam que todo o mal que as assolara também havia sumido. Então, no décimo dia, Francis saiu às ruas para procurar comida.
10 ANOS
FAZ 10 ANOS HOJE. FORAM ANOS DE DOR E DESESPERO. FORAM ANOS EM QUE A HUMANIDADE SOFREU. FORAM ANOS PARA MORRER. FORAM ANOS PARA APRENDER A LUTAR. FORAM 10 ANOS PARA ENTENDER O FIM. FORAM 10 ANOS ATÉ ENTENDER QUE HÁ ESPERANÇA. FORAM ANOS PARA VALORIZAR OS BRAVOS E RESGATAR NOSSA FORÇA COMO ESPÉCIE. AGORA TENTAMOS RECONSTRUIR O POUCO QUE SOBROU, MAS PARA ISSO, NUNCA DEVEMOS ESQUECER NOSSO PASSADO E MUITO MENOS OS DIAS QUE NOS TROUXERAM AO PRESENTE MOMENTO. NÃO PODEMOS ESQUECER NENHUMA BATALHA, NENHUMA CONQUISTA OU DERROTA. NÃO PODEMOS ESQUECER NENHUM HERÓI, SEJA VIVO OU MORTO. NÃO VAMOS BURLAR A HISTÓRIA, NEM DEIXAR DE CONTÁ-LA. VAMOS DESCOBRIR QUE A VIDA CONTINUA E QUE TODOS DEVEMOS FICAR DE PÉ. VAMOS COMEÇAR DENOVO, E AGRADECER ÀQUELES QUE NOS LIBERTARAM PARA ISSO...
Essas são as memórias do fim. As memórias dos mortos. As memórias de um mundo que acabou. As palavras abaixo sobreviveram aos seus narradores, algumas contam a trajetória de Hector, outras, daqueles que cruzaram seu caminho. Ele jurou protegê-las com sua vida e agora elas estão aqui... Para toda a eternidade.
Essas são as memórias do fim. As memórias dos mortos. As memórias de um mundo que acabou. As palavras abaixo sobreviveram aos seus narradores, algumas contam a trajetória de Hector, outras, daqueles que cruzaram seu caminho. Ele jurou protegê-las com sua vida e agora elas estão aqui... Para toda a eternidade.
INSTRUÇÕES
O livro começa no post "CAOS", o primeiro post do blog, ou seja, ele deve ser lido dos posts mais antigos para os mais atuais. Os capítulos estão numerados para facilitar a navegação.
CAPÍTULO 05
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