10 ANOS

FAZ 10 ANOS HOJE. FORAM ANOS DE DOR E DESESPERO. FORAM ANOS EM QUE A HUMANIDADE SOFREU. FORAM ANOS PARA MORRER. FORAM ANOS PARA APRENDER A LUTAR. FORAM 10 ANOS PARA ENTENDER O FIM. FORAM 10 ANOS ATÉ ENTENDER QUE HÁ ESPERANÇA. FORAM ANOS PARA VALORIZAR OS BRAVOS E RESGATAR NOSSA FORÇA COMO ESPÉCIE. AGORA TENTAMOS RECONSTRUIR O POUCO QUE SOBROU, MAS PARA ISSO, NUNCA DEVEMOS ESQUECER NOSSO PASSADO E MUITO MENOS OS DIAS QUE NOS TROUXERAM AO PRESENTE MOMENTO. NÃO PODEMOS ESQUECER NENHUMA BATALHA, NENHUMA CONQUISTA OU DERROTA. NÃO PODEMOS ESQUECER NENHUM HERÓI, SEJA VIVO OU MORTO. NÃO VAMOS BURLAR A HISTÓRIA, NEM DEIXAR DE CONTÁ-LA. VAMOS DESCOBRIR QUE A VIDA CONTINUA E QUE TODOS DEVEMOS FICAR DE PÉ. VAMOS COMEÇAR DENOVO, E AGRADECER ÀQUELES QUE NOS LIBERTARAM PARA ISSO...

Essas são as memórias do fim. As memórias dos mortos. As memórias de um mundo que acabou. As palavras abaixo sobreviveram aos seus narradores, algumas contam a trajetória de Hector, outras, daqueles que cruzaram seu caminho. Ele jurou protegê-las com sua vida e agora elas estão aqui... Para toda a eternidade.

INSTRUÇÕES

O livro começa no post "CAOS", o primeiro post do blog, ou seja, ele deve ser lido dos posts mais antigos para os mais atuais. Os capítulos estão numerados para facilitar a navegação.

CAPÍTULO 06

Já anoitecera e eu ainda não havia sentido nenhuma dor em meus braços. Andamos por horas sem sentir, sem parar, sem cansar. Estava perdido em memórias, imerso nas palavras de Francis. Os sinais eram mesmo claros. De repente tudo fez mais sentido, mas minha vida antes do fim nunca teria me permitido entender as coisas como Francis as relatou. Eu estava isolado, perdido. E só descobri o fim quando ele bateu de frente com minha própria vida. Mas desde então, minha experiência é muito parecida com a de Francis, e suas próxiamas palavras descrevem uma realidade vivida por muitos.

Francis saiu às ruas no décimo dia e por muito tempo ele não viu nada. As ruas estavam desertas, as casas também pareciam desertas. Muitos carros estavam abandonados no meio da rua, a maioria batidos. Havia corpos também. Alguns estavam lá desde o começo, segundo Francis, pois apresentavam alto estágio de decomposição. O cheiro era forte e desagradável, mas ele passou por tudo aquilo sem falar nada. O silêncio era uma segurança. Naqueles dias, ele ainda não era um guerreiro.

Eduardo, seu irmão, carregava um facão, com lamina de aço e fio. Ele carregava apenas um bastão de madeira. Atravessaram um bairro inteiro naquela manhã. A sensação era como a de estar em uma praça de guerra.

Para onde ele pudesse olhar, era possível ver cápsulas de balas, corpos e destruição. Uma dezena de carros havia sido queimada até sobrar pouco mais de uma estrutura coberta de fuligem. As janelas das casas, vitrines de lojas e tudo o que era vidro estava quebrado e sujo de sangue. Ratos e baratas herdarão o mundo. Ao menos naqueles momentos eles eram soberanos. O caos estava logo depois da porta de sua casa, e agora ele estava no meio dele.

Faltavam poucos metros até o mercado quando finalmente encontraram alguém. Era um indivíduo gordo. Ele virou a esquina e deu de cara com Francis. Por alguns segundos, ninguém falou nada, ele lembra de ter firmado o pulso no cabo do bastão, mas o manteve abaixado. Foi então que percebeu que o homem estava muito assustado e não poderia lutar, pois em suas mãos, abraçadas junto ao peito, ele carregava uma grande quantidade de dinheiro, além de duas garrafas de bebida. Vodka, segundo ele.

Quando Francis tentou se aproximar para conversar, ele o insultou e começou a correr na direção contraria. Estava bêbado, Francis sentiu o cheiro fermentado de seu hálito mesmo com alguns passos de distância. Ele mijou nas calças quando os encontrou, formou até uma pequena poça. Depois que ele correu, Francis juntou algumas notas que ele derrubou e guardou em seu bolso. Eduardo também o fez, e depois riram de todo aquele absurdo.

Alguns passos depois, não estavam mais sozinhos. Assim como eles, uma multidão tomou coragem para deixar suas casas. Era um dia de furtos e saques, era um dia de loucura total. As portas do mercado haviam sido destruídas, mais tarde perceberam que foram atravessadas por um carro. Lá dentro, uma verdadeira batalha começou. As pessoas agarravam TVs, geladeiras, computadores e lutavam com unhas e dentes pelo direito de levá-los para casa.

Carrinhos lotados de eletrônicos passavam por eles, e as pessoas os olhavam desconfiadas, tentando esconder e proteger seus espólios. Seguindo um rastro de destruição, encontraram um furgão preto. As portas laterais estavam abertas e alguns homens armados o carregavam com todo o tipo de produtos eletrônicos que conseguiam. Eram DVDs, TVs, computadores, laptops, câmeras digitais, aparelhos de som, monitores, filmadoras. Sobre o furgão, um homem robusto portava um rifle. Ele gritava e cuspia para todos manterem distância. Ele girava e apontava a arma para todos que ameaçavam seu perímetro.

Francis olhava tudo sem saber o que pensar, não conseguia entender aquele absurdo. Ele previra o fim, ele previra o caos. Poucos dias antes ele sabia que teria que lutar pela sua própria sobrevivência, mas agora testemunhava com seus próprios olhos a realidade... Ninguém mais entendia o que estava acontecendo. Ele balançou a cabeça em desaprovação e foi aí que um dos carregadores foi em sua direção. Francis tentou esconder o bastão, tentou sair de seu caminho. Avisou Eduardo e pediu que ele se afastasse, não queria arrumar encrenca com homens armados.

Foi só quando parou ao seu lado que Francis percebeu que não era a ele que o homem queria. Seus olhos arregalados brilhavam em uma mistura de adrenalina e medo. Ele encostou sua pistola na cabeça de um senhor que estava o tempo todo atrás de Francis.

Ele tentou se afastar da confusão, mas a multidão queria chegar mais perto, então a massa o empurrou cada vez mais para dentro de um pequeno circulo onde os homens discutiam.

– Dê-me a câmera! - disse o homem armado em um tom imperativo.
– Não posso. - respondeu o senhor.

Aquela discussão continuou por mais alguns segundos, e poderia ter durado até a eternidade se a atenção do homem sobre o furgão não tivesse sido tomada. Primeiro, ele disparou alguns tiros para o alto, o que gerou pânico na multidão, depois mandou que todos se afastassem para ele ver o que estava acontecendo. Os homens continuaram pedindo a câmera, mas o senhor, que agora se dizia um repórter, negava o pedido. Sob a cobertura do homem do furgão, o outro tentou tomá-la à força.

Durou apenas uma fração de segundo. Um movimento brusco. Um tiro. Francis nunca entendeu o que o fez agir naquela hora, mas assim que viu o repórter se virar e sacar uma arma. Ouviu um tiro atrás dele. Sabia de onde vinha aquele tiro e sabia qual era seu destino, então simplesmente soltou seu corpo que segurava o peso da multidão e esbarrou no repórter, acabaram girando e levando consigo o homem que tentava lhe arrancar a câmera. Durou apenas uma fração de segundos, mas aquele homem nunca mais levantou. O tiro lhe atingiu a nuca e atravessou até sair pela frente do pescoço. A bala ainda atingiu o repórter no ombro, mas Francis só descobriu isso muito depois.

Ele estava no chão, com o peso de dois corpos sobre ele. Ouvia gritos e tiros por todos os lados. Via os pés correndo alucinados ao seu lado. Sentia dor, muita dor. Estava sendo pisoteado. Empurrou com sua única mão livre e tentou se livrar dos corpos, mas não tinha força suficiente e não conseguia achar apoio para se levantar. De repente tudo ficou mais leve e mais claro. Eduardo tirou os corpos de cima dele, mas antes mesmo de Francis se levantar, pode ver que ele estava lutando.

Ele nunca tinha visto uma lâmina cortar nada como aquele facão. Não foi bonito. Ao ver os membros sendo decepados pela lâmina afiada do facão de Eduardo, ele foi tomado por uma loucura incontrolável. Ainda sentia muita dor, mas o bastão em sua mão parecia clamar por ação. Sem perceber, começou a dançar e girar. Sabia cada passo e compunha cada golpe com o máximo de sua força. Tentava abrir caminho, mas Eduardo estava cada vez mais longe. E foi quando ele viu que estava tudo errado.

Não eram mais a mesma massa de pessoas que estava ali no começo. Ao avançar mais alguns passos em meio à multidão desesperada Francis pode ver duas ondas colidindo. Uma massa maltrapilha, com hematomas, ferimentos abertos e tomada por raiva invadiu o mercado pegando todos pelas costas. Eram os infectados. Ele avançou ainda mais e pode ver que as portas pareciam um funil, elas continham um incontável número deles lá fora, mas a cada segundo, dezenas conseguiam entrar.

Francis parou alguns segundos e tentou escalar uma prateleira, então viu o Eduardo lutando na linha de frente, pensou que não haveria saída. Pensou ser aquele seu fim. Pensou um pouco mais, então voltou até perto do furgão onde encontrou o cadáver do homem que tentara arrancar a câmera do fotógrafo, mas o mesmo não estava mais lá. Teve que empurrar, bater e abrir caminho com força para andar no meio da massa de pessoas, mas valeu a pena, pois a arma ainda estava caída no chão. Francis pegou a pistola e se virou na direção da porta na esperança de ainda encontrar o Eduardo lutando.

Ouvia constantemente os tiros sendo disparados pelos homens do furgão, inclusive os tiros de rifle, e por alguns segundos agradeçou por eles estarem lá, acreditando que poderiam conter aquela massa ensandecida. Mais uma vez, ele estava empurrando, batendo e gritando para abrir espaço, navegava no meio do mar de pessoas usando as placas do supermercado, ele sabia que Eduardo estava entre os caixas e a seção de congelados. Francis sentiu fome e se arrependeu disso, pois logo depois desse pensamento pode ver os reais efeitos da contaminação. Se tivesse algo em seu estômago, teria vomitado.

Agora ele via pessoas com o rosto dilacerado, órbitas vazias e sangue nos dentes. Agora via seus primeiros fantasmas, e eles estavam por todos os lados.

Francis encontrou Eduardo e foi até ele. Gritou seu nome uma vez, gritou seu nome denovo. Não queria chegar muito perto enquanto ele rodava o facão para manter todos afastados. Ele não ouvia. Francis não ouvia sua própria voz. Então levantou a pistola e atirou para cima. Foi um eco seco, mas todos se voltaram para ele e por poucos segundos, ele encontrou silêncio para dizer - Achei uma saída - Foi terrível! Aleijados, ensangüentados e desesperados, os infectados foram atraídos para Francis. Agora ele era o alvo e correu com o Eduardo para a saída de acesso à garagem.

Correram abrindo caminho entre as pessoas, sentiram que eles estavam logo atrás deles e por duas ou três vezes, ouviram o zunido dos tiros de rifle passarem perto deles para atingir os infectados que os perseguiam.

A saída para a garagem tinha uma grade de aço, mas ela estava aberta e presa por uma corrente. Algumas pessoas os seguiram, mas logo atrás delas o número de infectados era absurdo. Francis ordenou aos dois últimos homens que tentassem bloquear o caminho, mas eles continuaram correndo e Francis podia jurar que se não estivessem tão assustados, teriam rido na sua cara. Ele esqueceu isso e voltou para tentar fechar a porta, mas não tinha tempo para desenrolar a corrente, então atirou nela para partir os elos e após fechá-la, juntou dois elos inteiros e atravessou-os com seu bastão. Sabia que não duraria muito tempo, mas esperava que fosse o suficiente.

A última coisa que ele viu antes de descer, foi o homem, com o rifle sobre o furgão, morrer. Ele gritou quando seus pés foram agarrados, mordidos e puxados. Ele disparou tiros para baixo, mas já era tarde demais. Dezenas de mãos apertavam, arranhavam, e puxavam seus pés até onde outras dezenas de bocas podiam morder, esmagar e sangrar sua carne.

Descendo para a garagem, Francis insultou sua ignorância em tentar proteger, até o último segundo os equipamentos eletrônicos. Mas então lembrou que seus tiros salvaram sua vida e calou seus pensamentos.

No final da rampa, ele pode ouvir o bastão partindo e um estrondo da grade despencando, sentiu a pressão da loucura em sua alma, sentiu o medo fraquejar suas pernas, mas aquele ainda não era o último prego do caixão, pois foi só quando finalmente Francis ultrapassou a porta da garagem que ele rugiu em desespero. Tudo estava perdido...

CAPÍTULO 05

As palavras de Francis lembravam as minhas que tantas vezes tentei escrever. Ele andava ao meu lado pela mata fechada que margeava a estrada, fora em alguns pouco momentos de silêncio nos quais ficavamos atentos a qualquer movimento estranho, ele narrava sua visão do fim. Eu desejei por muitas vezes poder anotar ou gravar tudo, mas ele me obrigou a confiar em minha memória, e confiei. Depois descobri que aquelas palavras nunca mais sairiam da minha cabeça.

Quando começou, todos puderam acompanhar de suas casas. O fim estava na TV, na internet, no rádio. Cada centímetro do planeta era coberto pela mídia. A humanidade estava apavorada, mas ainda nem sabia ao certo porquê.

Uma contaminação em escala global, toques de recolher em quase todas as cidades do planeta, barreiras entre estados, polícia e exército nas ruas, saques, brigas e fanatismo religioso. Tudo estava "no ar". E por um tempo não foi real. A realidade estava para fora da porta da casa da maior parte da população. Era mais um programa de TV.

Naquele momento, os sinais ainda não eram claros, poucos foram os homens que perceberam a ameaça. Grande parte das pessoas discutiu as notícias como um grande "quebra-cabeças" e não percebeu quando o fim bateu a sua porta.

Durante alguns meses antes da contaminação global, o mundo testemunhou fatos isolados que indicavam o que estava por vir. Aconteceu primeiro na África. Redes de notícias internacionais, fundamentadas em boatos que corriam soltos pela internet, descobriram pelo menos uma centena de cidades e povoados fantasmas. As casas ainda estavam lá, algumas ainda estavam limpas, as panelas no fogão com o gás já extinto, torneiras abertas, telefones fora do gancho e carros abandonados no meio da rua. Apenas algumas poucas delas, e as últimas a serem descobertas, apresentavam sinais de lutas e destruição. Sangue não foi encontrado.
A curiosidade humana ainda não havia sido totalmente conquistada pelo mistério africano, até que toda uma equipe de jornalistas ingleses, da BBC, desapareceu. O mundo não se importava com cidades inteiras da África, mas a busca pelos repórteres acabou por acender a chama da curiosidade.

Redes de notícias do mundo todo mandaram seus representantes para lá. A internet foi tomada por teorias da conspiração, discussões inflamadas sobre abduções coletivas e o fim dos tempos. Algumas facções religiosas apontavam o fato como punição divina, outras apontavam como um milagre. A seleção de Deus para povoar o paraíso, e assim, milhares de pessoas do mundo inteiro migraram para a África na esperança de serem escolhidas também. As cidades fantasmas africanas despertaram tanta atenção, que as pessoas não foram capazes de perceber que o mal se espalhara.

O aumento da violência nas grandes cidades não chamava atenção suficiente da mídia, poucos relatos foram registrados, mas alguns deles se tornaram, de forma assustadora, um mapa da contaminação.

Poucas pessoas leram sobre uma senhora idosa que foi presa por matar o filho, a nora e os três netos, de 12, 8 e 6 anos respectivamente. Segundo ela, para os registros oficiais, eles haviam sido possuídos pelo demônio. Primeiro teria sido sua nora, ela a viu atacar o marido. No começo imaginou ser apenas uma depravação sexual, mas então percebeu que havia sangue por todo o lado e que seu filho havia sido mordido até quase a morte, quando tentou fugir, acabou sendo encurralada em seu quarto, seus netos a perseguiam com ódio nos olhos e sangue na boca, "eram cães raivosos" declarou a matriarca assassina que empunhou o revolver calibre 38 do falecido marido para exterminar a família. "Nunca aprovei o casamento.", disse ela para encerrar a declaração.

Esse não foi um caso isolado, na época era comum encontrar matérias sobre assassinos em série, pessoas desaparecidas, conflitos armados entre vizinhos, crimes passionais (louco de ciúmes, dizia uma das manchetes) e histórias mais bizarras como a do açougueiro canibal. Um pai de família de 42 anos mata sete clientes com mordidas, alguns tiveram os olhos, o nariz ou até mesmo os lábios arrancados. Uma matéria publicada no dia seguinte revelava que o filho do açougueiro estava desaparecido e que assim como o seu próprio, os corpos das vítimas sumiram do necrotério.

Naquele mês, os pássaros migraram para o sul. Era inverno. Os pássaros migraram rumo ao frio. Eventos curiosos como esse também foram noticiados. Um jornal argentino publicou uma extensa matéria sobre uma infestação de gatos e ratos na Patagônia. Curiosamente, dois dias depois de uma massiva invasão de ratos na região, os gatos começaram a chegar. Por algum tempo, as pessoas agradeciam aos gatos que exterminaram a maior parte dos ratos, mas eles continuaram chegando. Alguns moradores que tentaram alimentar os animais tiveram suas casas invadidas por dezenas de bichanos. As ruas estavam infestadas e eles atacavam tudo o que era vivo para comer. Seres-humanos viraram comida de gato. Então tudo ficou sério demais. Os gatos foram caçados e aniquilados por uma força tarefa do exercito.

Mas mesmo assim, as pessoas continuavam em suas casas, presas pelo toque de recolher, acompanhando por seus televisores o mundo que ruía a sua volta. A verdade estava nas ruas. A verdade estava na frente de qualquer um. Mas muitos ainda agradeciam à crise os dias de folga do trabalho. Agradeciam e voltavam para frente da TV, onde o colapso do planeta era a atração principal. E foi assim que muitos morreram. Quando o sistema de TV saiu do ar, as pessoas estavam com sua noção de realidade abalada. Não haviam percebido que a contaminação fugira ao controle, e muito menos sabiam do que se tratava a "contaminação", pois em nenhum momento, a mídia que apenas transmitia o caos que se espalhava pelas ruas, conseguiu chegar perto o bastante para entender aquela ameaça.

Foram dezoito dias desde as primeiras cidades decretarem estado de calamidade pública. Dezoito dias até a humanidade ruir. Tomando-se por base o mistério das cidades-fantasmas africanas e os registros relatados acima, esse período abrange cerca de quatro a seis meses. Durante todo esse tempo, nada foi feito. Nenhuma atitude preventiva, de combate ou medida evasiva foi tomada. Após o toque de recolher, a maioria dos países passou a ser controlado pelas forças armadas e a população pode ver a nação morrer pela tela da TV.

Um ano atrás.
Um ano lutando.
Um ano tentando entender.

Milhares de livros contam a história da humanidade, desde sua origem até seus grandes impérios. Milhares de páginas escritas para a eternidade, com conquistas dos homens através dos tempos. Milhares de anos evoluindo, criando ferramentas e tecnologia. Milhares de anos moldando o mundo para a total soberania da raça humana.

Para inúmeros habitantes do planeta, sejam de qualquer raça, credo, região ou classe, imaginar o fim era algo impossível. A humanidade era segura de seu domínio sobre a Terra, mas mesmo assim, calculava que seu fim estava próximo.

A autodestruição era única ameaça, mas ninguém imaginava o fim como ele ocorreu. As teorias sobre o fim do mundo revelavam alarmantes efeitos do aquecimento global, apresentavam o efeito estufa, a emissão de poluentes e o desmatamento como causas de desequilíbrios na natureza e contavam os dias para uma suposta tragédia climática, caso a ocupação nociva da raça humana sobre o planeta não fosse drasticamente abrandada.

Pois ela foi...
Somos poucos agora.
O planeta está vivo. Está se recuperando.
Mas nós estamos morrendo, bem como nossa história.

Pela primeira vez não pudemos fugir, não pudemos ficar indiferentes. Mesmo nas primeiras horas a contaminação já era global. E em poucos dias estava dentro de nossas casas. Não havia cura ou salvação. Não havia dúvida ou esperança. Era o fim da humanidade. O Apocalipse estava "ao vivo" em todos os canais.

Assim como Francis, ainda hoje tenho pesadelos, e todos envolvem os primeiros dias do terror. Ainda vejo os rostos machucados, inchados e marcados de ódio. Ainda acordo ofegante no meio da noite e acredito que tudo está perdido. Ainda hoje consigo chorar quando lembro das pessoas que nunca mais verei... E ainda hoje lembro da expressão de raiva dos primeiros que matei.

Acho que nunca poderia relatar a realidade desses dias com a frieza de Francis. As coisas não são mais as mesmas em minha cabeça. Os sons são os mesmos. Tudo começou com gritos distantes e foi crescendo. Lembro de ouvir freadas no asfalto e um pouco de discussão, depois mais gritos, muitos gritos. Poucas horas se passaram até as ruas serem tomadas pelos sons de tiros, brigas e pelos gemidos agudos dos infectados. As imagens, porém, não são mais tão claras. Minha mente transformou as memórias e os rostos retorcidos em faces da morte. Vejo os olhos profundos dos fantasmas, quase órbitas negras. Vejo os dentes arqueados para fora e o desespero, aquilo que depois começamos a chamar de fome.

Francis falava claro. Ele lembrava de tudo.

Os três primeiros dias foram de caos e terror. As pessoas que ainda se negavam a acreditar na epidemia acabavam contaminadas e abriam as portas de sua casa para a morte. As ruas estavam tomadas por enfermos, policiais, militares e alguns poucos homens que se juntavam para tentar proteger as famílias, mas o número de infectados crescia a cada hora e não podia ser enfrentado.
Entre o quarto e o oitavo dia, uma verdadeira guerra se espalhou pela cidade, as pessoas que haviam respondido ao toque de recolher, começaram a se sentir entediadas em suas casas e decidiram lutar. Havia uma esperança sólida na alma de todos que dizia que o pior já havia passado, mas o número de infectados quase triplicou depois dessa atitude, acabando por aniquilar qualquer capacidade de reação militar.

Do oitavo ao décimo dia, uma trégua era percebida. Não havia mais tiros, gritos, lutas e mortes nas ruas. Quem estava em casa podia jurar que a paz voltara a reinar. Mas a verdade é que não havia lutas, pois os infectados apenas perseguiam as pessoas saudáveis, e naqueles dias, estavam todos escondidos em suas casas.

Na noite do nono dia, a TV saiu do ar. Sem saber o verdadeiro status da contaminação e perdendo sua única janela com o mundo, as pessoas voltaram-se para as janelas da vida real. Naquele momento, as cidades-fantasmas africanas voltaram a ser a pauta de todas as discussões. Como aquelas cidades inteiras sumiram do dia para a noite, agora as pessoas olhavam de suas janelas e acreditavam que todo o mal que as assolara também havia sumido. Então, no décimo dia, Francis saiu às ruas para procurar comida.

CAPÍTULO 04

Não sei dizer quantos segundos levei para recuperar minha consiência, mas assim que entendi o que havia acontecido, também percebi que minha pistola já estava em punhos, acho que esse era meu reflexo mais rápido e mais importante. Consegui ouvir alguns sons distantes, alguns gritos. Mas tudo era tão abafado que os sons passavam pela minha cabeça como rajadas de vento passam por uma fresta. Eu ainda estava deitado no meio do metal retorcido, tentando manter meus olhos abertos e focar alguma coisa quando fui puxado e arrastado para fora da caminhonete por onde antes ficava seu para-brisas.

Me retorci todo tentando levantar sozinho, instintivamente tentei lutar, mas pouco antes de levantar a arma, percebi que era Cotovelo quem estava me puxando, então relaxei um pouco meu corpo e ele me ajudou a levantar. Meu braço estava inteiro vermelho e molhado de sangue, mas ainda não havia sentido nenhuma dor. Eu via os pedaços de vidro enterrados nele e os puxava para fora com naturalidade enquanto andava apoiado nos ombros de Cotovelo. Tive a impressão que o para-brisas todo estava enterrado no meu braço, mas lógico que isso era um exagero, eu estava apenas em choque, e como não era a primeira vez, sabia que aquilo ia doer muito algumas horas depois.

Cotovelo me colocou sobre o capô do Dodge e correu para ajudar Nove-Contos, que apesar de não ser tão parrudo quanto o colega, carregava Francis sozinho. Quando pensei em correr ajudar, Francis despertou e chutou os dois para longe dele. Ele já estava revigorado e, como era de se esperar, extremamente irritado. Francis é exatamente o tipo de pessoa que não gosta de perder, que não sabe perder, e naquele exato momento, ele havia acabado de perder um caminhão, sua caminhonete, um punhado de bons soldados, dois batedores, dezenas de armas e equipamentos além da batalha para qual havia se preparado.

Ele andou até o carro bufando. Sua cabeça estava vermelha e tinha um corte que descia do alto da testa até o fim do nariz. Nas suas mãos, ele carregava a escopeta que estava na caminhonete. Ele primeiro apontou para Nove-Contos e Cotovelo e mandou os dois entrarem no carro imediatamente, depois olhou para mim e pediu de forma mais gentil, ou seja, as mesmas palavras sem me apontar a arma.

Assim que entrei naquele carro, lembrei que poucas horas antes, havia acordado em uma das camas macias do abrigo de Durval, lembrei que estava me sentindo estressado e reclamei de dor nas costas, lembrei que uma simples dor-de-cabeça estava me impedindo de escrever e que estava enjoado e não queria viajar. Assim que Nove-Contos acelerou o potente motor V8 e partiu cantando os pneus deixando para trás o cheiro de borracha queimada e uma nuvem de fumaça que se misturava aos destroços, lembrei que não sabia tocar violino, mas também lembrei nada disso importa mais. Eu sou um guerreiro e estou exatamente onde quero estar.
Nessa manhã voltei a sentir o cheiro de sangue.

Estacionamos o carro em uma pequena clareira, repleta de quiosques e churrasqueiras, alguns kilometros antes na estrada. Algum tempo atrás, famílias inteiras passavam seus finais de semana alí, na beira do rio, pescando e curtindo a natureza, agora somos apenas eu e Francis, aproveitando a água para limpar os ferimentos.

– Os filhos da puta minaram a estrada! Disse Nove-Contos ainda agitado – Só pode ser isso. A porra do caminhão levantou do chão!
– Aqueles merdas tem lança-foguetes? – Perguntou Cotovelo.
– Não! Cara! Levantou do chão! Tinha que ser uma mina!

Enquanto os dois discutiam, percebi que Francis estava me olhando. Até agora eu ainda não havia perguntado sobre nosso destino, e como tudo parecia perdido, essa era a hora! Eu sabia que seu silêncio escondia algo, agora eu sabia que ele precisava de mim. Agora eu sabia que ele não poderia esconder mais nada.

– Sabe Francis... Aconteceu há muito tempo atrás... – Comecei e fiz uma pequena pausa, esperando sua atenção – Eu estava dirigindo por essa avenida larga, uma daquelas cheias de pistas e de alta velocidade, alguns metros na minha frente havia um outro carro. Eu estava na pista da esquerda e ele na do centro. Cem metros na nossa frente, o semáforo ficou amarelo e eu comecei a reduzir, esse outro carro acelerou. A gente estava chegando perto do cruzamento mas ficando cada vez mais distantes um do outro, ele acelerando e eu freando. Eu sabia que fecharia antes dele passar, mas seria rápido como sempre acontece. E fechou, ele furou. Por uma simples brincadeira, bati a mão na manopla do cambio e fiz com a boca um som de explosão, mas nesse exato segundo, ou nessa exata fração de segundo, um carro surgiu da trasversal e os dois colidiram. Um capotou várias vezes, por vários metros antes de parar como uma pilha de metal retorcido, o outros parou alí, esmagado como uma barata no asfalto, compacto como uma lata amassada. Seis pessoas morreram. No carro que estava à minha frente, um casal, e no outro, uma família inteira. Foi simples. Foi gloriso. Assim é a morte. Assim é a vida. Nenhum dos dois freou. Nem por um segundo. Foi rápido demais. Sem aviso, sem despedidas, sem grandes questões. Apenas acontece. Como uma bala na nuca. Você nunca sabe quando e como a morte chega da mesma forma que você nunca sabe quando e como a vida acaba. É só a perspectiva que muda. Se você pensa na morte que vem, você vive com medo. Se você pensa na vida que vai, você vive com liberdade. Uma vida também precisa do fim para ser completa.

Terminei de enfaixar meus braços, acreditando que não restara nenhum pedaço de vidro enterrado nele para me atormentar depois.

– É assim que eu vejo as coisas agora...
– Ninguém deveria morrer hoje. Minha estratégia era intimidar.
– Acho que está na hora de você me contar... Tudo! – Falei encarando seus olhos cinzas e seu rosto vermelho.

Francis se afastou do rio e caminhou em direção ao carro, abriu o porta-malas e começou e abastecer sua mochila. Nove-Contos e Cotovelo ficaram parados observando. Caminhei até ele e pude ver que o porta-malas nada mais era que um grande depósito de armas e munição. Havia de tudo lá dentro.

– Pegue tudo o que você consegue carregar a pé. – Disse Francis – Pegue água também, e o que você precisar para seus curativos. São quatro dias de viagem em frente, Hector, terei tempo para te contar tudo.

Francis mandou Nove-Contos e Cotolevo voltarem para o abrigo, segundo ele, como era planejado, mas ordenou que não deveriam contar a ninguém sobre o ocorrido. Tudo deveria continuar como fora planejado e dentro de quatro dias, eles deveriam partir com os voluntários para a estação. Eu estava apenas começando a entender a situação. Olhando para a água do rio, adivinhei nosso destino e finalmente tudo se encaixou. Vamos matar homens. Não fantasmas, infectados sem alma, mas homens que se apropriaram das estações de tratamento de água e que por algum tempo moraram lá, que reativaram tudo e forneceram para nosso resto de sociedade uma esperança de sobreviver. Vamos caçar e matar esses homens pois eles se tornaram uma ameaça à nossa liberdade. Eu sabia que isso iria acontecer.

Um homem nunca escapa de sua própria guerra. Essa era a minha.

Matar traz uma sensação de poder que não pode ser compreendida. Quando senti isso pela primeira vez ainda era quase macio e fraco como uma criança. Minhas mãos eram lisas e meus dedos finos. Meus braços não tinham quase nenhum músculo e ainda estava acostumado a comida farta e variada, sempre quente e limpa. Apertei meus curativos mais uma vez e empenhei toda minha atenção naquele porta-malas.

Meus braços doem. Mas estou feliz.

O peso da pistola, a força do recuo provocado pelo disparo, o punho de um facão, a sensação de rasgar a carne. Essas coisas penetram pelas minhas mãos, tomam minha corrente sanguínea e explodem no meu coração.

Nove-Contos quase perdeu o controle de tão contrariado, mas preferiu partir bufando e gritando palavras de revolta a desobedecer Francis. Cotovelo apenas observava perdido e suava. O carro sumiu na estrada e eu e Francis ficamos sozinhos.

– Você já sabe para onde estamos indo, certo?! – Ele perguntou sério.
– Sim.
– E sabe que vamos sozinhos?!
– Sim.
– Sabe, esse era meu plano original. Chegar na surdina e matar todos, tomar a estação e colocar meus homens lá, mas algumas pessoas, – Disse ele com scarnio – considerariam isso muita brutalidade. Mas olhe agora... Temos mais de trinta mortos nas costas e ainda vamos partir para a brutalidade. Acho que ninguém faz questão de abrir os olhos e ver o mundo em que estamos vivendo, mesmo depois de tudo.
– Isso não é novidade. E é uma das razões pelas quais prefiro estar sozinho.
– Mentira. Eu sei porque você está sozinho Hector, e sei que você não está fugindo, você também está caçando. Eu sei que você esteva no presídio quinze dias atrás. Eu sei o que você está procurando.

Os últimos quinze dias pareciam outra vida depois das últimas horas, mas eles estavam lá, no fundo da minha cabeça apenas esperando para me atormentar. Francis sabia disso. Ele precisava provar que havia pensado em tudo.

– Eu posso ajudar você, e podemos acabar juntos com isso, mas antes preciso da sua ajuda, aqui e agora. – Disse Francis já sabendo qual seria minha resposta, mas eu nem precisei abrir minha boca, apenas continuei em frente em silêncio.

Ele me acompanhou, mas não em silêncio. Pela primeira vez em tanto tempo, Francis estava disposto a falar. Francis era uma lenda, e lendas nascem a partir de mistérios sem respostas. Francis era um sobrevivente único. Era um herói da própria existência. Muitos deviam suas vidas a ele. Agora lutavam e matavam por ele. Muitos também morreram por ele. Mas fora Mariana, ninguém o conhecia. Até agora, pois foi em suas palavras que encontrei uma das mais lúcidas e detalhadas memórias do fim.

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